20 mar Bach e José Aniceto
A queixa partiu do musicólogo George Lederman, quando terminávamos de ouvir A Paixão Segundo São Mateus, de Bach.: nunca mais se comporá assim. A noite sem lua, o pátio extenso da casa de campo e o retorno ao silêncio após os últimos acordes da orquestra tornavam a sentença bíblica. Na verdade, nunca mais se compôs assim. A prova é que escolheram a música do mestre alemão para ser lançada no espaço, escapando a prováveis hecatombes que varram o homem e sua arte do planeta. Algum dia, seres de outros universos poderão se encantar com a mais sublime e elevada música. Talvez, os ETs não compreendam como foi possível que do mesmo barro original tenha nascido a mão que desenhava partituras e a que apertou o botão das ogivas nucleares para o ato final.
A Paixão é uma obra complexa, dura quase quatro horas, exige dois coros, cada qual com sua própria orquestra, e inúmeros solistas vocais e instrumentais. As peças profanas do compositor são poucas, se comparadas à sua música sacra, composta sobretudo de 1723 até sua morte em 1750, quando trabalhava em Leipzig, como mestre de capela ou diretor musical de várias igrejas. O miraculoso para nós modernos é o volume da obra de Bach: trezentas cantatas, das quais nos chegaram duzentas; cinco paixões, três oratórios, um magnificat, seis concertos de Brandemburgo, diversos concertos para violino e cravo; fugas, prelúdios, fantasias, sonatas, tocatas, partitas, suítes e caprichos, escritos numa época em que não existiam computadores editando partituras musicais.
Será que o tempo diminuiu sua medida ou possuía um outro sentido e utilidade que perdemos? Bach tinha uma grande família e se ocupava da educação dos filhos. Religioso, compunha para o futuro, sempre na perspectiva do eterno. Era imune à ansiedade do homem contemporâneo, que só pensa no reconhecimento imediato e no consumo do seu produto artístico.
O compositor ficou esquecido cem anos e, só agora, chamam atenção para a qualidade da música produzida por seus filhos. A história do homem é um terreno arqueológico em que camadas se sobrepõem às outras e, por milagre, alguns tesouros perdidos vêm à luz.
Há vários níveis de saber na construção do conhecimento humano. Penso numa pequena orquestra da minha cidade do Crato, uma humilde banda cabaçal de dois pífaros, uma zabumba, uma caixa e um par de pratos. Tinha o nome de Os Irmãos Aniceto, e era formada pelo pai e quatro filhos homens. Bastava olhá-los para reconhecer que o sangue de índios e negros corria nas suas veias.
Criados nos vales e na chapada do Araripe, acostumaram-se a caçar na floresta e banhar-se nas nascentes d’água. Plantavam arroz, feijão, mandioca e milho como todos os pequenos agricultores. No tempo livre, tocavam seus instrumentos e dançavam. Tinham um repertório de mais de cem peças, de que se diziam autores. Pode-se questionar a informação. Outras bandas locais executavam músicas semelhantes. Mas isso não tem importância. A arte é um bem comum e só o homem moderno inventou a assinatura como marca de propriedade.
Por alguma razão a família Aniceto sempre me lembrou a família Bach. Há em comum entre eles a religiosidade, o sentido de sagrado, a arte incorporada à rotina da vida. Toca-se o pífaro com a fé e concentração com que se bebe um copo d’água. Com a música celebram-se os nascimentos, os casamentos, as colheitas, a morte. Não há rupturas na cadeia do viver, nenhum staccato. O tempo flui com outra medida. Plantar o roçado de milho não é diferente de compor uma marcha de estrada.
Tive provas disso. Nos meus tempos de pesquisador de cultura popular assisti uma apresentação de palanque dos Irmãos Aniceto. Depois de marchas e baiões cada membro faria um solo com o seu instrumento, tocando e dançando. Os quatro irmãos, Francisco, João, Antonio e Raimundo saíram-se bem, sendo aplaudidos. O Velho José Aniceto, com quase noventa anos, foi deixado por último. Para ele, mestre e pai, sobraram os pratos, que tocava por serem leves e não exigirem esforço.
Quando o filho mais velho fez uma vênia na sua frente, estava dado o sinal para que começasse a dança. Solene e vagaroso, o velho colocou os pratos no chão e deitou-se de bruços. Debatia-se, agitando braços e pernas, como se lutasse contra um monstro poderoso. O público, estranhando a dança, não teve a menor compaixão e vaiou o velho até que ele se levantou, dando o rito por encerrado.
Eu sofri como se fosse contra mim todo o clamor. Dias depois, ele me confessou: já estou velho e minha briga é com a morte. Atiro-me à Terra e ela me puxa para baixo, querendo me levar. Luto, luto para subir ao céu.
A música barroca de Bach eleva-se em espirais e sugere um movimento de ascensão. O mesmo que o velho José Aniceto tentava dar à sua vida e à sua modesta criação.
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