30 abr Acho que sou um criminoso
Não apenas eu, mas as pessoas em geral. Explico. Precisei comprar duas torneiras e fui a uma loja. Quando tentei subir pela escada rolante, um guarda me abordou de forma agressiva: Senhor, não pode! Ordem do governo. Desconhece a lei? As lojas só abrem às 10 horas.
Ah, desculpe!
Ainda era 9h e 30.
Aproveitei e fui ao banco. Quase ninguém. As máscaras, os olhares estranhos, a vigilância armada. Parecia filme cowboy. Assalto, help! Cadê Durango Kid, Roy Rogers e Zorro?
Voltei à loja, fiquei numa fila, guardando distanciamento. Entregaram-me um cartão numerado e molharam minhas mãos com álcool. Já nem tenho impressões digitais, de tanto lavar panelas e esfregar os dedos com gel.
Nenhum amigo, todos se olhando desconfiados. A pessoa à sua frente, ou a pessoa logo atrás, podia ser um portador são da Covid. O que faço? Olho raivoso e ameaçador. Talvez um grunhido cause mais efeito. AAAAARRRRRRRRGGGGGHHHHH!!! Rosno. O som sai abafado e ninguém percebe meus caninos arreganhados. A máscara esconde o indivíduo perigoso em que me transformei.
AAAAARRRRRRRRGGGGGHHHHH!!! Rosno, novamente, mas as pessoas não esboçam o menor temor. Todos capricham na expressão de poucos amigos. O homem cordial brasileiro, o modelo criado por Sérgio Buarque de Holanda para nos representar foi para o brejo. Não, não, foi para Portugal, sobretudo depois da eleição de Bolsonaro.
As duas torneiras da cozinha apresentaram defeito, duraram apenas dez anos.
As anteriores bateram os trintas anos. Fizemos festinha com bolo e velas. Mas agora, tudo é fabricado para quebrar ligeiro. Quebraram e precisei trocá-las. Duas torneiras DECA das mais baratas custam mais de meio salário mínimo. Tem torneiras de quase três mil reais. Não, não é de ouro.
Comprei as mais baratinhas, chorando, mas comprei. Ou trocava, ou a água do prédio ia para o brejo. O brejo novamente? Que pobreza vocabular! Coitado de mim, que arrisquei a vida para economizar água. Ainda estou morrendo de medo, conto as horas até que se completem os 14 dias de risco de contágio. Hoje faz 8 dias que cortei o cabelo. Estava me sentindo tão feio barbudo e cabeludo que arrisquei a vida para melhorar a aparência. Faltam 6 dias para o término do risco, a quarentena. Vivo contando dias e horas de minhas escapulidas, transgressões, pecadilhos, crimes.
Tornei-me um criminoso, mas não sou diferente dos outros. Todos se sentem assim, quando fogem às leis sanitárias da OMS e às portarias do Estado. Só não entoam um bendito de arrependimento e contrição como os da Igreja Católica inquisitorial.
Perdão, meu Jesus, perdão, Deus de amor
Perdão, Deus clemente, perdoai, Senhor!
Eis-me aos vossos pés, grande pecador
Meus enormes crimes, perdoai, Senhor.
Não se enganem, o Tribunal da Santa a Inquisição está de volta.
Socorro!
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