02 maio Sou o meu carcereiro
Minha avó morava em sua propriedade Boqueirão, distante apenas 24 quilômetros da cidade de Crato. Bem perto, hoje. Mas nas décadas de 1950 e 60, quando eu viajava de férias, o percurso poderia durar três horas, nos meses de chuva.
Dona Dália ficava anos sem ir à cidade, onde residiam alguns de seus irmãos e filhos. Gostava da família, de igrejas, rezas e missas, mas não apreciava viajar. A imagem do Coração de Jesus na parede e o rosário pendurado ao pescoço supriam a necessidade religiosa; uma filha ao lado de casa, bastava à carência afetiva.
Vovó tinha toda a liberdade do mundo para ir onde quisesse. Nada a impedia. Mas ficava em retiro nas suas terras, quase sempre sozinha, porque desejava.
– Não vou, dizia.
E se plantava ali, repetindo os dias e as horas iguais, na mais pura contemplação e serenidade. Depois de meses na sua companhia, eu também não sentia vontade de retornar ao mundo de onde viera.
Programei viajar ao Crato, em março de 2020. Precisava visitar lugares para a escrita do meu novo romance. Veio a pandemia e as fronteiras se fecharam. Ainda não fui. Será que irei algum dia? Sonho com cidades, mas não transponho os limites do Recife onde moro. Sou meu próprio carcereiro, obediente a leis de confinamento que não proclamei.
A metáfora da pandemia consiste em escolher entre a loucura por confinamento e a sanidade ao ganhar o mundo e contagiar-se. Parece a história de quando o filho abandona a casa do pai e ele pergunta: Quer pouco dinheiro e minha bênção ou muito dinheiro e a maldição? Correr risco é necessário para se crescer.
O isolamento de Dona Dália, nas terras do Boqueirão, foi escolha dela própria. O resguardo em que vivo é escolha minha e de uma vontade fora mim, um poder que me escapa.
Pior do que eu estão os que não têm nenhum dinheiro e foram amaldiçoados.
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