20 jul A representação do tempo que vivemos
Vi a foto de um hospital norte americano, durante a epidemia de gripe espanhola, em que mais de vinte milhões de pessoas morreram, nos anos dezoito e dezenove do século passado. Na imagem em preto e branco, aparecem dezenas de camas arrumadas em duas fileiras, num pavilhão comprido, onde mal se enxerga o fim. Não há revestimento de azulejo nas paredes, o que revela improviso. Quem escapou à Primeira Guerra, correu o risco de morrer pela influenza.
Esta representação do sofrimento durante a gripe não lembra em nada as terríveis pinturas a óleo da Peste Negra, de pintores como Bruegel, Bosch e Tintoretto. A ausência de cores na foto talvez contribua para a diferença. O preto e o branco, a sombra e a luz sugerem silêncio e calma, uma quase placidez. Mas será apenas pelo efeito das cores e da luz que os artistas alcançaram comunicar gradações diferentes do horror?
No retrato da gripe espanhola a ordem do ambiente, a disposição dos móveis e a postura de médicos e enfermeiras contribuem para a aparente serenidade. Os pacientes estão deitados em camas, com livros abertos nas mãos, parecendo concentrados na leitura. Ao vê-los, ninguém imagina que sofrem de febre, dores musculares, cefaleia, falta de ar e outros sintomas. Mas o olhar desse fotógrafo não é o mesmo dos pintores Klimt e Munch, que também representaram em suas obras a pandemia espanhola.
Por que diferem tanto as imagens? Alguns pintores medievais e renascentistas viam epidemias, guerras, doenças e morte como sobrenaturais, castigos divinos por pecados cometidos. Num plano de seus quadros, anjos tentam salvar os justos, enquanto demônios arrastam os maus para o inferno. Noutro plano, devassos são cozinhados em caldeirões com azeite fervendo ou agonizam empalados. A sexualidade aparece disforme e patológica.
A Igreja Católica reprimia Eros e suas manifestações, simbolizando na Peste Negra o castigo pelos excessos. No terceiro plano de um quadro, no mais elevado céu, Deus contempla os horrores do mundo terrestre, interferindo vez ou outra através de seus anjos, a favor de alguma alma piedosa.
Não lembro se há na fotografia norte americana, no alto de alguma parede, a imagem do Cristo. Esse crucifixo tão comum nos pavilhões dos hospitais brasileiros, mantidos na maioria por instituições católicas, não deveria existir nos Estados Unidos, um país em que predominou o protestantismo.
Na foto, também é possível a leitura de uma hierarquia, diversa da que descrevemos na pintura medieval. Os pacientes estão deitados em camas de ferro, supostamente pintadas de branco e, acima deles, firmes e de pé, os médicos e as enfermeiras. São os representantes de uma nova hierarquia de poder, não mais religiosa: a Ciência. Somente ela explica as doenças e pode curá-las.
É possível que o artista que retratou a cena desejasse expressar a nova ordem do mundo, num país que desde a metade do século dezenove cantava através dos seus poetas as conquistas do progresso, da tecnologia e das ciências naturais. Deus até poderia agir, mas se o fizesse, seria através de mapas e roteiros traçados no plano terrestre, em que tudo se explica nos fenômenos físicos, químicos e biológicos.
Por que a lembrança dessa fotografia retornou ao meu consciente, se estava guardada no esquecimento? Porque desejo saber o que sobreviverá na literatura, poesia, cinema, música, dança, fotografia, pintura e outras artes sobre a pandemia que atravessamos. Constatamos que a Ciência, que ocupou o lugar de Deus, ainda não nos deixa seguros quanto ao nosso futuro.
O filme Ran, de Akira Kurosawa, termina com a seguinte metáfora: no crepúsculo, um cego caminha entre as ruínas de um castelo, à beira de um precipício. Carrega um ícone de Buda em seus braços. Dá um passo e a imagem divina cai no abismo. Sozinho e cego, desamparado de Deus, apenas a noite e o vazio espreitam o pobre homem.
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