16 ago O assassinato de Monsenhor Joviniano e o crime de Francisco Brennand
Monsenhor Joviniano Barreto foi esfaqueado por um romeiro do Padre Cícero, na matriz de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte – Ceará, no ano de 1950. Os soldados que prenderam o assassino perguntaram as razões do crime. Com a serenidade de um fanático, o homem respondeu que o padre remexera nos mistérios de Juazeiro.
Durante o sermão de uma missa, Joviniano Barreto pôs em dúvida os milagres de transmutação da hóstia em sangue, ocorridos na pequena vila onde o Padre Cícero era vigário. É possível que eu tenha ouvido a palavra mistério, pela primeira vez, no relato dessa história trágica. Nunca mais consegui me desfazer do seu significado de interdição, limite, segredo por desvelar.
O crime, além dos horrores circunstanciais, se impregnou de erotismo e sexualidade: uma virgem, a beata Maria de Araújo, sangrou pela boca ao mastigar a hóstia, o corpo simbólico de Cristo, durante a comunhão; um sacerdote de Deus foi sangrado porque duvidou que o Cristo tivesse revivido a sua paixão no corpo da humilde beata.
As religiões não cristãs convivem com a sexualização de suas divindades. Na Índia, os templos são adornados com falos, linga, símbolo da energia masculina, e vaginas, yoni, emblema primário da energia feminina. Juntos, eles simbolizam a união criadora e mantenedora da ordem universal. É o hieros-gamos, dos gregos. O cristianismo aboliu os cultos explicitamente sexualizados e orgiásticos. Promoveu a ascese, a castidade e a negação do corpo. Baniu o hedonismo em favor de uma assepsia do prazer.
Eros foi duramente mascarado, a nudez encoberta, os genitais disfarçados, diminuídos nas proporções ou até mesmo abolidos, num evidente contraste com as religiões hinduístas em que os falos são representados em tamanhos avantajados, como poder gerador. O sexo não manifesto, encarcerado, explodiu em perversões e escândalos, crimes e histerias.
O Renascimento tentou reaver o direito à expressão da sexualidade do Ocidente, reprimida na Idade Média. As pinturas não reproduziam apenas os santos aureolados, mas também os corpos nus, plenos de erotismo. Essas transformações demoraram a chegar a Portugal e Espanha. Por muito tempo os dois países ibéricos permaneceram sob a tutela da Igreja Católica Romana, transportando para o mundo novo que descobriram as culpas e mazelas do catolicismo, impondo-as à gente de cá, liberta no que se referia à culpa do sexo. Culpa manifesta em casos como o da beata Maria de Araújo, ocorrido em pleno século vinte.
O artista Francisco Brennand viveu uma experiência inimaginável. A construção do seu parque de esculturas, nos arrecifes do Marco Zero, por pouco não virou tragédia. Brennand recebeu a encomenda das esculturas, entre elas uma torre mirante. A sociedade recifense queixou-se que a torre lembrava um gigantesco pênis. Surgiram protestos, manifestações contra e a favor, discursos sobre a liberdade de criação. Os políticos que fizeram a encomenda nunca tinham visitado o atelier do artista, na Várzea, onde os sexos masculino e feminino aparecem recriados em centenas de cerâmicas. Imaginamos estar num templo indiano ou na Grécia primitiva.
Em que mistérios o artista remexeu? Na afirmação de que somos dotados de genitais, de sexualidade, e que não é possível esconder as nossas pulsões, criadoras ou destruidoras. Tentaram proibir a arte de Brennand porque ela afirma a nossa natureza essencial, a mais primitiva, o Eros que pulsa em oposição a Tanatos. Brennand, igual ao padre, vasculhou as forças eróticas da criação e da transubstanciação, que convertem trigo em corpo, vinho em sangue, pedra triturada em cerâmica. Tocou no mistério da vida, expondo ao Recife que temos sexo, fazemos sexo por mero gozo. E isto, à luz cristã, sobretudo evangélica pentecostal e neopentecostal, é crime hediondo.
Francisco Brennand morreu. O exuberante parque vem sendo pilhado, depredado, pichado como o próprio Recife. A história que ilustra o conservadorismo tacanho dos moradores da cidade foi esquecida. Não deram mais notícias sobre a censura que tentou impedir a construção do parque. Disfarçada por enfeites décor, a torre farol se ergue, e por dentro dela o rijo falo. O conjunto de esculturas é sem dúvida a mais bela obra de Brennand. Penso assim. E também pensam assim os dois barqueiros que se oferecem para fazer minha travessia do Marco Zero aos arrecifes.
– Vamos? É muito bonito.
– É mesmo!
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