24 ago Uma crise sem nome
De joelhos, o homem olha um ponto indefinido no horizonte e no futuro, depois de atravessar a barreira de arame farpado. Seu rosto possui uma expressão antiga, como as cerâmicas de reis assírios, da Mesopotâmia. Lembra as relíquias preciosas destruídas pelos americanos e ingleses que bombardearam o Iraque e, mais tarde, vandalizadas pelos membros do Estado Islâmico. A barbárie a que se referem americanos e europeus não é atributo apenas de um povo.
Absorto na investigação, o homem parece indiferente à menina que chora desesperada, talvez porque os grampos do arame feriram seu corpo frágil. A mãe também já conseguiu livrar-se da barreira e tenta consolá-la, acariciando-a com a mão direita, enquanto sustém no braço esquerdo o filho pequeno, um menino a ponto de cair. Do outro lado da cerca, um rapaz suspende os arames, a expressão aflita. Teme ser retido, antes da sua travessia. O rosto possui os mesmos traços dos povos arcaicos, as civilizações que nos legaram a maior parte do saber.
O parágrafo acima não se trata de um exercício de descrição, daqueles que fazíamos na quarta série primária, olhando imagens toscamente coloridas. Trata-se de mais uma das milhares de fotos que todos os dias aparecem nos jornais e na internet, tão comoventes que mudam o sentimento das pessoas em relação ao drama vivido pelos que tentam fugir da guerra, perseguição e pobreza, no Oriente Médio e na África.
São migrantes, refugiados ou clandestinos? Perde-se tempo buscando a palavra certa para defini-los, evitam reconhecer que se trata de refugiados, pessoas buscando refazer suas vidas, longe da pátria insalubre. Países como a Inglaterra e a França, que colonizaram a África e o Oriente Médio, enriquecendo às suas custas, fecham as portas e tentam barrar a entrada dos indesejados. Esquecem de quando ocuparam o mundo inteiro com seus exércitos, sem pedir licença e sem atravessar cercas de arame.
As fileiras de homens, mulheres e crianças se deslocando a pé também lembram os retirantes nordestinos fugindo à seca. A dor, a desolação e a miséria são as mesmas. Os nordestinos caminhavam dentro de um território chamado pátria, falavam o mesmo idioma, mas nem por isso estavam imunes à rejeição, ao desprezo e ao preconceito.
Dos campos de concentração cearenses da década de 30 – os Currais do Governo –, às propostas de barreiras migratórias em alguns estados do Sul e Sudeste, os fugitivos da seca enfrentaram barreiras reais e simbólicas, tão intransponíveis quanto as cercas do leste europeu. E toda vez que eles mesmos buscaram soluções para a miséria, em aglomerados como os de Canudos e Caldeirões, foram reprimidos pela força, mortos e destroçados, como se representassem ameaça à ordem estabelecida pelos mais poderosos.
Essa relação se alterava bruscamente quando havia interesse em mão de obra barata, semiescrava ou escrava, como no ciclo da borracha amazônica, na construção civil em São Paulo, na edificação de Brasília, da ponte Rio/Niterói, e na expansão de fazendas em Mato Grosso e Goiás. Nesses casos, fazia-se um trabalho de aliciamento dos sertanejos analfabetos e miseráveis, através de folhetos de cordéis, violeiros repentistas e de pessoas treinadas para seduzi-los com promessas de enriquecimento fácil. A realidade se revelava bem distinta do sonho. O tráfico escravo da África para o Brasil, em navios negreiros, mudava-se em tráfico do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte, em barcos a vapor e caminhões pau-de-arara.
Fluxo ou crise migratória? Chega um tempo em que a única chance de não morrer é partir. Isso nada tem que ver com nomadismo, expansão de território, busca de um guru espiritual. Foge-se da miséria. E esse trânsito muda a feição do mundo. Foi sempre assim, desde o começo da história. E não adianta criar barreiras, interdições, porque nada contém essa força em deslocamento. O Brasil mudou graças a ela e a Europa certamente mudará.
Para melhor, com certeza.
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