O equívoco de Ariano Suassuna | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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O equívoco de Ariano Suassuna

Quando conheci Ariano Suassuna, frequentando o Departamento de Extensão Cultural da UFPE, do qual ele era diretor, Ariano achava que a cultura norte-americana levaria a cultura brasileira ao colapso. Vivíamos o período mais sombrio da ditadura militar, as patrulhas esquerdistas censuravam até quem bebia Coca-Cola. Mesmo sendo de esquerda, eu não escondia meu gosto pelo blues e jazz, cinema e literatura dos Estados Unidos. Alguém já abrira meus ouvidos e eu identificava a matriz comum da música negra americana com o samba e o ritmo caribenho. Por cima, eu amava Caetano e Gil, o tropicalismo e a antropofagia, movimentos que Ariano nunca aceitou. Fiel ao canibalismo eu supunha que o colonizado terminava por assimilar o melhor da cultura dominante, transformando-a e dando a ela uma identidade própria. Não atinava por que Ariano defendia nossa formação ibérica e recusava qualquer expressão made in USA. Mal sabia ele que o “Inimigo” se gestava entre muros, crescia como um Golem.

Já na década de 1970, eu ia aos candomblés do Recife, por curiosidade e porque gostava dos toques e do ambiente religioso. Tinha vários pacientes e amigos de trabalho que frequentavam os terreiros, até acompanhei a pesquisa de dois antropólogos. Tornei-me assíduo ao candomblé e observei o número cada vez menor de praticantes da religião, enquanto cresciam os cultos evangélicos. Nos hospitais, onde identificava filhos e filhas de santo, eles se tornavam raros, ou porque trocavam de culto ou porque tinham medo e vergonha de confessar que eram xangozeiros, como os designavam com preconceito. Passei a escrever minhas observações. A crônica “Sob camadas de esquecimento” relata uma ocorrência de enfermaria, a história da mulher negra, idosa, filha de Nanã Buruku, que pressente a morte próxima e canta um ponto, apelando à orixá que venha buscá-la. Eu escuto e reconheço. Chego perto, finjo não saber de nada, peço que me revele que canção dolorosa é aquela. Ela insiste tratar-se de um hino evangélico. Percebo o medo e a vergonha. Volto a essa história no romance Dora sem véu, tanto me impressionou.

O mesmo fenômeno aconteceu nas brincadeiras populares, caboclinho, maracatu de baque solto e virado, la ursa, boi, uma deserção alarmante. Perguntava por um brincante e respondiam que não brincava mais, entrara para a “lei de crente”. Temi pelo nosso futuro. Até que uma geração mais nova reagiu, assumiu-se como negro e afrodescendente, sentiu orgulho da cultura ancestral e já é visível o resultado aqui em Pernambuco e em todo o Brasil. Os brincantes crescem em número, mas os evangélicos crescem mais, em escala geométrica. Preocupa-me a interpretação que fazem da Bíblia, um caminho que não se abre a novas experiências, nem na literatura, nem no cinema, nem na música. Me pergunto se o gospel e os hinos por eles entoados irão alcançar a expressão da música negra americana. O processo de evangelização foi diferente nos dois países, ainda não é possível avaliar o que os evangélicos brasileiros almejam, além da ascensão social.

Só existe um livro para eles: a Bíblia. Assemelha-se à ortodoxia judaica com a Torá, e ao islamismo com o Alcorão. Pregando em todos os lugares, sem nunca cansarem, os evangélicos demonizaram a cultura brasileira com a tirania do pecado, a ameaça do Inimigo e do fogo da Geena. Os mais atacados por eles são os candomblés, de maioria negra, afrodescendentes que não escondem sua origem, não se disfarçam em brancos. Os templos evangélicos também são frequentados por fieis de ascendência negra, mas que negam a cultura de matriz africana e a demonizam.

Porém, o que me preocupa mais é a escalada dos evangélicos na política, a ponto de constituírem blocos na câmara federal, em assembleias estaduais e câmaras municipais. Há bons políticos e pastores entre eles, mas a maioria se alinha com discursos homofóbicos, conservadores, a favor da censura de livros e repressão militar, tendendo à direita extrema.

Nesse cenário, a literatura sofre e se fragiliza. Temos uma população de analfabetos funcionais, que não leem, e uma população crescente de leitores que reconhecem um único livro, recusa o legado da poesia, do romance, de contos, novelas e peças teatrais. A Bíblia é lida como verdade absoluta, dogma, Palavra de Deus, e não como um livro de narrativas, escrito por diversos autores, conforme sempre imaginei e defende o professor Robert Alter, no seu livro A arte da narrativa bíblica.

Torna-se difícil ou quase impossível chegar aos potenciais leitores, cerca de um terço da população do Brasil, tentando conquistá-los para a literatura e as artes em geral. Nesse ano e meio de governo “evangélico” conservador, houve investidas para desmontar o que foi construído na educação e na cultura, censura e obscurantismo semelhantes aos dos regimes totalitários da Alemanha nazista, Rússia comunista, China maoísta e países islâmicos radicais.

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