02 set O Nordeste existe?
Rubens Figueiredo e eu participávamos de uma mesa sobre literatura brasileira, quando me fizeram a tradicional pergunta, essa que se tornou curricular para mim: você se considera um escritor regionalista? Rubens pediu o microfone e afirmou ser um regionalista, jamais um universalista. Ele traduz e estuda literatura russa, sabe que apesar da divisão entre eslavófilos e europeizados, os escritores se preocupavam em criar para leitores da Rússia, pensando neles. Refletiam sobre o povo russo e chegavam às grandes questões do homem, sem veleidades universalistas.
No Brasil, desde o começo do século passado, havia um desejo de escrever semelhante a europeus e norte-americanos modernos. Gilberto Freyre e vários intelectuais criaram um movimento em oposição à Semana de Arte Moderna de 22, o Movimento Regionalista-modernista, de 1926. Da valorização da cultura regional, surgiu o romance de 30, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Erico Verissimo, para citar apenas alguns nomes.
Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano Ramos achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do país com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenando por “ignorância ou safadeza” muita coisa que merecia ser salva. Com desconcertante franqueza respondeu quando lhe perguntaram se era modernista: “Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”. Se o regionalismo idealizado por Gilberto Freyre em reação aos modernistas ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que já existia desde as capitanias hereditárias, agravou a tendência em separar a produção intelectual do Nordeste e Sudeste.
Desculpem essa digressão didática, mas necessito dela para responder a pergunta que me fazem. Considerem que existiram cânones do regionalismo e do romance de 30. Passados noventa anos, não se escreve mais com essa linguagem, a menos que seja um caso de anacronismo. Mas se vocês consideram ter nascido e morar numa região, e vivenciar a cultura local como regionalismo, eu me assumo regionalista. Na Feira de Frankfurt, em 2013, onde eu era o único escritor residente no Nordeste na comitiva do Brasil, fiquei feliz em estar ao lado de Guimarães Rosa num belo stand, apresentados como escritores regionalistas.
A questão é mais séria do que imaginam. O empenho de intelectuais e acadêmicos de diversas áreas – sociólogos, antropólogos, críticos literários – em folclorizar e subestimar o valor da produção cultural das regiões brasileiras, fora do eixo Sudeste, que detém o poder econômico e da informação, é bastante desleal e antigo. Cabe na análise das causas uma leitura política, por serem indissociáveis. Do Rio de Janeiro vieram os comandos que reprimiram a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, movimentos republicanos emancipatórios do Nordeste. Também do Sudeste chegaram as forças militares que esmagaram Canudos e veio a orientação para bombardear o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidades que sonhavam com um novo modelo de sociedade, sem nada dos ideais comunistas que Rui Facó imaginou.
Tratava-se de populações caboclas, descendentes de índios e escravos retomando o modelo dos quilombos e tribos. Somos mestiços de negros, índios, portugueses, judeus, sírios, libaneses, árabes, ciganos, holandeses e de muitos outros povos, falamos o mesmo idioma brasileiro, mas temos padrões culturais diferentes. Gilberto Freyre defendia nossa miscigenação, contrariando o que a ciência equivocada do século XIX e início do século XX condenava como degenerescência racial, o que levou muitas nações, inclusive o Brasil, ao delírio da eugenia.
Cometeram erros históricos ao nos interpretarem. Sendo do Rio de Janeiro, não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra, Euclides da Cunha contribuiu para codificar o que lhe pareceu sertão, guiando a academia, leitores e gerações futuras a buscarem o modelo estabelecido por ele de semiárido habitado por bárbaros, sub-raça ameaçada de desaparecer.
Os Sertões, livro preconceituoso, supremacista, racista, cientificamente ultrapassado tornou-se a cartilha em que universidades e gerações de leitores formaram um imaginário de sertão e do homem sertanejo. O processo é semelhante ao dos orientalistas em relação ao Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado por estar fora dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste brasileiro sofreu por se encontrar fora dos limites da sociedade do Sudeste. Foi igualmente “sertanizado” por acadêmicos e cientistas.
Edward Said refere os dois aspectos do Oriente que o distinguem do Ocidente, na geografia imaginativa europeia: a Europa é poderosa e articulada; a Ásia é derrotada e distante. A China ainda não havia se tornado o que é hoje, é bom lembrar. Vale o mesmo para o Nordeste e o Sudeste? Perdemos o poder econômico e cultural, deixamos de estabelecer regras, desde a chegada de D. João VI e sua corte ao Rio de Janeiro. Já no século XVIII tentava-se controlar as migrações de sertanejos do “norte” para os sertões “paulistas”. Paulista não se referia apenas aos nascidos no Estado de São Paulo, mas a uma legião de bandeirantes, criadores de gado, grileiros de terra e mineradores, que ocupavam São Paulo, Goiás, Paraná e até territórios do Piauí. Portanto, esse “sudeste” já definia leis, espaços, conceitos, padrões e até o que nós, da banda de cá, podíamos ser e sonhar.
Não cabem aqui todas as questões suscitadas por essa pergunta. Nem sequer desenvolvi o tema do preconceito e do racismo, visceralmente ligado à nossa formação. Semelhante a Kafka eu também poderia ter assumido o não lugar, o não pertencimento, como muitos nordestinos fazem por sobrevivência. Mas isso seria impossível. Em tudo o que escrevo reafirmo minha geografia de nascimento, a origem, onde vivi no passado e onde escolhi morar no presente.
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