20 out A saga de Claudiney Silva, um quase morto
Só tive a medida exata do sofrimento de Claudiney Silva, paciente de um hospital público onde trabalho, no dia em que vi seu retrato abraçado à filha de dois anos. Olhando sorridente para a câmara, ele nem parecia o enfermo que me habituei a ver, queixoso e transtornado. A imagem tirou-me de tempo. Outras imagens dispostas em sequência num álbum, iguais a uma revista em quadrinhos sem balões de fala, me ajudaram a recompor pedaços da vida de Claudiney, um doente quase anônimo que dava a impressão de não ter história. Um escritor famoso queixou-se de que os médicos possuem o olhar horizontal, como o dos atores de teatro que contemplam o nada. Acho que muitas vezes evitamos enxergar o oceano de sofrimento que nos cerca, talvez por sobrevivência.
Claudiney Silva tem vinte e três anos. Quando levou o tiro que o deixou sem sensibilidade da cintura para baixo e sem poder andar, acabara de completar vinte e um. Vendia ovos em Ponte dos Carvalhos, na periferia do Recife. Dois rapazes o abordaram na descida de um ônibus. Ele tentou esconder o apurado de cento e noventa reais e um dos assaltantes alvejou sua coluna vertebral. Bandidos nunca erram a pontaria.
Claudiney, que não tinha planos além da sobrevivência, começou uma via crucie de sofrimento, no instante em que caiu baleado. Tentou levantar-se, mas as pernas não obedeceram. Socorrido na Emergência do Hospital da Restauração, ficou internado por muito tempo, o bastante para saber que quase nada podia ser feito por ele. Teve alta com as primeiras escaras na região sacral, que iriam se infectar e acometer outras áreas do corpo.
Na foto em que aparece bebendo cerveja ao lado de quatro amigos, Claudiney veste bermuda e camiseta e exibe um corpo naturalmente musculoso. É possível que Marlene, a mulher catorze anos mais velha que o recebeu em casa como companheiro, o achasse bonito. Se beleza é uma aura de vitalidade, no retrato é fácil encontrá-la. No rosto atual de Claudiney não enxergamos nenhum dos sinais que chamamos de belo. A menos que idealizemos a palidez, a magreza extrema e os cabelos finos e quebradiços, como faziam os poetas românticos.
Ao sair do hospital em sua primeira alta, Claudiney Santos voltou para a avó que o adotara, quando nasceu. Marlene, a mulher com quem tivera uma filha, o expulsara de casa quando ficou sabendo que o companheiro contraíra uma doença venérea. Não perdoou a traição com uma prima de dezessete anos, na vida de prostituta desde os treze. Marlene, que não é bonita, também aparece numa foto, tirada em frente a uma Kombi de lotação. Veste shorts bem curto e blusa deixando a barriga de fora.
Nos primeiros dias em que Claudiney ficou na casa da avó, Marlene levava suas refeições, embora não tivesse mais nada com ele. Pura misericórdia. Claudiney não recusava porque a situação era difícil e em certas horas não dá para bancar o orgulhoso. Sem maiores remorsos, compreendeu que a ex-mulher não merecia a sacanagem que fizera com ela. Para tentar redimir-se, contou a Marlene que batera na prima quando descobriu que estava com blenorragia, mas ela não se tocou. Soube mais tarde que ela já andava de caso com um motorista.
Como não tinha emprego fixo, nem recolhia INSS, Claudiney ficou a ver navios num porto inseguro. Só tinha a avó para socorrê-lo, igualzinho a quando nasceu. Marlene rareou as visitas, apagou as lembranças do que faziam juntos em noites calientes e desapareceu. Os amigos da cerveja tomaram chá de sumiço. Só as escaras aumentaram, e a infecção ganhou corpo. Claudiney precisou ser novamente internado num hospital público. Vive há três meses sob os cuidados do Estado, o mesmo que não lhe garantiu segurança.
Claudiney, como todos os que nascem, irá morrer. Mas sofrerá horrores até que chegue sua hora. A infecção destrói os tecidos, o sangue, a carne, apesar dos cuidados de médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Os investimentos para debelar a infecção e melhorar o estado nutricional de Claudiney são altíssimos. Os antibióticos, a albumina e os curativos especiais custam caro, dinheiro que poderia ser usado na prevenção de doenças endêmicas, em saneamento básico, em educação.
Internado há três meses, Claudiney espera alcançar condições clínicas para submeter-se à desarticulação dos membros inferiores, uma forma radical de amputação. Antes, precisará fazer outras cirurgias. Os procedimentos lhe darão chances de viver um pouco mais e melhor. Agarra-se à vida com unhas e dentes. Cobra atenção e cuidados da equipe, como qualquer paciente que se cura e sai de alta caminhando. Igualzinho a ele, existe outro paciente na enfermaria. E muitos e muitos outros espalhados por Pernambuco e pelo Brasil. Todos vítimas da violência.
O Estado gasta fortuna para cuidar desses quase mortos, mas falha em cuidar dos vivos. Não seria mais barato, raciocinando friamente como um economista, prevenir a violência? O Estado talvez possua o olhar horizontal, não enxerga misérias e dramas como os de Claudiney. Deixa por nossa conta o sofrimento de tratar as feridas que ele não previne.
Crédito da imagem: Bárbara Wagner – Brasília Teimosa
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