O número de páginas de um livro não diz do seu valor | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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O número de páginas de um livro não diz do seu valor

O romancista Juan Rulfo bem poderia ter escrito “Não mora mais ninguém”, poema em prosa do peruano César Vallejo, pela maneira semelhante como lida com os vivos e os mortos. Vallejo escreve: “O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou. (…) Todos de fato deixaram a casa, mas na verdade todos continuam dentro dela. Não, não é a lembrança deles, são eles mesmos que ficam”.

Com a fatalidade de quem não se desvencilha da memória e do passado, Rulfo criou uma obra inquietante, silenciosa, em que as vozes de cada história narrada soam como se fossem a nossa própria voz.

  

Romance ou novela, como preferirem chamar, Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, influenciou gerações de escritores latino-americanos, mesmo os que nunca o leram. Algo parecido ao que aconteceu na Rússia com O Capote, conto de Nicolai Gogol. Segundo Dostoievski, toda literatura russa posterior a Gogol é filha dessa narrativa meio absurda, meio kafkiana, a história de um homem que perde o seu capote e na tentativa de encontrá-lo se extravia em meio à burocracia.

Atribui-se a Rulfo a paternidade do realismo mágico, também conferida a Alejo Carpentier. Mas é bem distinta a atmosfera onírica de Pedro Páramo daquela que consagrou Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão, e beirou o exotismo com Isabel Allende.

Em Pedro Páramo, os mortos falam e caminham, afigurando-se mais reais e tangíveis do que os próprios vivos. Eles parecem ter a função de extraviar os sobreviventes de Comala, um lugar estranho imaginado por Rulfo, esfumaçado e poeirento, onde o tempo possui uma outra medida e as vozes e lamentos das pessoas brotam de abismos.

Para desencaminhar-se nesse infra-mundo, um filho de Pedro Páramo se desloca na companhia de um tropeiro, realizando o desejo da mãe de que ele conheça o pai que o gerou e pise a terra de Comala, de onde ela saiu para nunca mais voltar: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe que disse. E eu prometi que viria vê-lo quando ela morresse”.

Ao final da leitura, nos perguntamos se Comala existe de verdade. Se Pedro Páramo é apenas o espectro de um poder insano e absoluto, que se arruína e leva consigo as pessoas e o mundo em volta, ou se é um homem que parece nada temer, mas que se assombra com a noite e seus fantasmas. Sem resposta, repetimos as mesmas perguntas a cada nova leitura desse livro infinito e único, apesar de suas páginas tão escassas.

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