07 mar As aventuras de um judeu americano
Alguns intelectuais conservadores dos Estados Unidos no fundo não consideravam como escritor americano Isaac Bashevis Singer, um judeu polonês imigrado com 33 anos e que sempre escreveu na língua materna, o iídiche. Perguntavam por que ele escrevia sobre ladrões judeus e prostitutas judias. A resposta era: “Querem que eu escreva sobre ladrões espanhóis e prostitutas espanholas? Eu escrevo sobre os ladrões e as prostitutas que conheço”.
Da geração de filhos e netos de judeus que chegaram à América até a década de 50 do século passado, Saul Bellow, canadense de pais russos criado em Chicago, resolve a questão do não pertencimento e da assimilação já na primeira frase do seu romance As Aventuras de Augie March, de 1953, quando seu personagem afirma: “Sou americano, nascido em Chicago – Chicago, aquela cidade sombria –, e faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre”. Não é mais um judeu influenciado por Kafka – que se achava sem raízes – quem escreve. Porém um americano afirmando seu lugar de americano, rompendo com a ditadura claustrofóbica do gueto.
Se fosse publicado dois anos mais tarde, em 1955, o lançamento de As Aventuras de Augie March coincidiria com o centenário de um outro livro fundador da América, Folhas de Relva, de Walt Whitman, um escritor que segundo Jorge Luis Borges “toma e não diz a ninguém a infinita decisão de ser todos os homens e de escrever um livro que seja todos”. Menos pretensioso, Bellow escreve o romance de uma América individualista, fútil, em que a miséria convive com o luxo excessivo e onde despontam os esplendores e a falência cultural. E o faz sem o nacionalismo febril de Whitman, mas com o júbilo de quem descobre a América para si, para conhecê-la e usufruir dela.
A narrativa em primeira pessoa de Augie March é quase delirante, às vezes feérica nas suas frases intermináveis em que se misturam citações clássicas, de história, mitologia, religião e filosofia; o latim, o iídiche e as gírias, o que provocou raiva em alguns puristas. Personagens de várias épocas e literaturas marcam presença e falam em meio à galera dos personagens criados por Bellow. Mas as infinitas citações são tão apropriadas, sem qualquer ranço erudito, sem intenção de esmagar o leitor ou cuspir em seu rosto sua falta de cultura, jamais atrapalhando a fluidez do texto, permitindo saltos de parágrafos aos que sentem preguiça de consultar o Google.
Bellow disse certa vez a Philip Roth que em algum lugar do seu sangue judeu e imigrante havia vestígios palpáveis de dúvida quanto ao direito de exercer o trabalho de escritor e escrever livros em inglês. Um personagem do romance, William Einhorn, fala do pai como construtor pioneiro de Chicago e teoriza sobre o desenvolvimento tipicamente americano, obra da inteligência num mundo aberto e cheio de possibilidades.
Criando biografias de cidadãos extraordinários ou comuns, muitos deles imigrantes ou seus descendentes, Saul Bellow constrói Augie March, um protótipo americano, um judeu que não vive apenas as reminiscências da Europa ou do Holocausto, que acredita na força transformadora do pensamento e afirma através de Einhorn: “… eu não sou uma pulha quando eu penso, quando eu realmente penso… No fim, você não pode salvar a sua alma ou a sua vida pelo pensamento. Mas, se você pensa, o menor dos seus prêmios de consolação é o mundo”.
E Saul Bellow alcançou escrever um romance que não é apenas a América, mas o mundo.
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