18 maio Vou morar na Europa e ser famoso
O escritor peruano Mario Vargas Llosa anda falando tantas sandices, uma delas que prefere Bolsonaro a Lula, que alguns intelectuais brasileiros se manifestaram. Julián Fuks escreveu um artigo sério em que analisa produção literária e discurso, no caso Llosa. E de forma mais gaiata Marcelo Coelho também comenta o extremismo do Nobel de literatura, achando que talvez decorra da vaidade e da reposição de testosterona.
Há cerca de 20 anos, eu tinha me ofendido com as afirmações de Llosa sobre a América Latina, numa entrevista. Escrevi um artigo curto, publicado em jornais, revista e num livro de crônicas editado pela Objetiva. Como sou mais velho e desconfiado, percebi bem antes a arrogância e o desprezo de Llosa por sua cultura de origem.
Reproduzo a crônica.
Vou morar na Europa e ser famoso
– Não seria o escritor que sou sem os anos que vivi na Europa. Felizmente a vida me premiou convertendo-me num cidadão do mundo.
Foi Mário Vargas Llosa quem afirmou isso, e não eu. Pertenço ao reduzido número de escritores que nunca moraram fora do seu país, uma moda crescente nos dias atuais.
As duas frases não podem ser lidas separadas. Quando Llosa afirma que se não tivesse vivido na Europa não seria o escritor que é, ele não diz se é um bom ou um mau escritor. Diz apenas que, por felicidade, foi premiado e converteu-se num cidadão do mundo. A segunda frase é consecutiva à primeira. Concluímos que foi graças a ter morado na Europa que Mario Vargas Llosa tornou-se um bom ou mau escritor e um cidadão do mundo.
O autor não afirma: os que não nasceram nem moraram na Europa não serão cidadãos do mundo. Mas torna claro que para ele, um peruano, a cidadania e o livre trânsito pelo mundo se deram a partir de sua residência na Europa. Em vinte e três palavras, Vargas Llosa deixa transparecer as dificuldades dos intelectuais da América do Sul em relação aos seus países de origem, e suas culturas.
O argentino Julio Cortázar não apenas morou na França, também se naturalizou francês, levando intelectuais a protestarem contra a deserção. Em meio ao terror das ditaduras militares, que assolavam nosso continente, acreditava-se num pertencimento latino-americano, numa cultura própria, um ideário que negava a supremacia dos padrões europeus e norte-americanos. Na contramão dessa ideologia, Jorge Luis Borges foi inclemente ao negar qualquer contribuição de negros e índios à literatura Argentina. Também era um viajante, morou na Suíça e na Espanha, deu conferências e aulas no restante do mundo.
Será mesmo necessária essa permanência fora de casa para se produzir uma obra significativa? O poeta americano Walt Whitman, autor de Folhas de Relva, nunca viveu longe dos Estados Unidos. Em 1855, ele escreveu no prefácio da primeira edição das Folhas: “A prova de um poeta será que seu país o absorva tão afeiçoadamente quanto ele o absorveu.”
Todos lembram a repetida afirmação de que o poeta para cantar o mundo deve primeiro cantar a sua aldeia. O projeto de Whitman era cantar a América e sua gente. Mas cantou todos os homens do planeta, “a terra e o mar, os animais, peixes e pássaros, o céu do firmamento e os orbes, as florestas, montanhas e rios…”, porque acreditava num poeta ideal “capaz de incorporar a grandeza, estranheza e diversidade de seu país, de sua gente, de sua natureza.”
Vargas Llosa toca na questão dos países periféricos, sem importância econômica, não expansionistas, que não produzem bens de cultura de massa com alcance global, mesmo em tempos globais. Como se cria uma obra importante, sem orbitar pelo mundo, como fizeram Machado de Assis, Graciliano Ramos e Carlos Drumond de Andrade? Todas as experiências do homem são de algum modo análogas, esteja onde ele estiver.
Num ensaio sobre a narrativa oral, Walter Benjamin classifica os narradores em viajantes e sedentários. Os primeiros percorriam cidades e contavam suas histórias quando retornavam para casa. Os segundos ouviam os relatos, e depois de remoê-los, contavam-nos para outros ouvintes, adaptando-os à realidade local. Dessa maneira os conhecimentos se difundiam, viravam patrimônio de todos.
A oralidade virou escrita, que virou cinema, que virou televisão, que virou Internet, que virou…, que virou… As mil e uma noites árabes aconteceram no sertão nordestino? Ou foram os Irmãos Grimm que coletaram as suas histórias nas noites sertanejas? Já não é possível responder, tão permeáveis se tornaram as fronteiras.
A ponto de se poder afirmar: felizmente, a vida nos premiou com tantas informações que, mesmo não vivendo na Europa ou nos Estados Unidos, nos convertemos em cidadãos do mundo. Podemos ter acesso aos bens de cultura produzidos por outras nações, embora, infelizmente, os bens que produzimos, sobretudo na literatura, não consigam percorrer o caminho para fora do nosso país.
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