Noite de São João | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
1989
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Noite de São João

Lembro a sensação de que a lua cheia acompanhava os meus passos. Se tomasse à direita ou caminhasse em frente, ela me seguia como um balão de gás hélio, preso ao corpo por um fio. As cinco casas na paisagem erma pareciam distantes do mundo: as fogueiras acesas, o fogo amarelo da lenha contrastando com a luz branca da lua. Era a noite do santo mais celebrado pela gente sertaneja. Em toda casa as chamas subiam ao céu, convidando São João para descer à terra em sua noite. Mas ele nunca vinha. Se viesse, contava a lenda, a terra inteira arderia num incêndio. Por isso, sua mãe não o acordava, deixava que dormisse a sono solto.

Preciso transpor o terreiro de casa, um descampado que parecia infinito aos olhos e às pernas da criança de quatro anos, chegar à morada de Dona Valdemira, dizer que a convido para ser minha madrinha de São João. Mamãe me instruíra direitinho e observava de longe o filho em missão diplomática.

Encabulado, caminho pelo chão onde o pai acendeu uma fogueira de troncos de angico e baraúna, madeiras nobres usadas nos mourões e porteiras dos currais, em portas e janelas, caibros e ripas dos telhados. O menino desconhece que essas árvores magníficas estão a ponto de desaparecer, depois de anos de derrubadas e queimas. Pensa somente na vergonha que será fazer o pedido à vizinha de terras.

A velha senhora sente-se honrada. É morena, possui traços dos índios jucás, antigos habitantes da região dizimados por decreto do Reino. Fala bem articulado, carrega nos erres, um jeito arcaico que as gentes sertanejas conservaram, até o rádio e a televisão contaminarem seus ouvidos e línguas.

– Eu vim pedir à senhora pra ser minha madrinha.

O céu carregado de lua cheia mais parece um dia. A terra se espalha em silêncio e amplidões.

Em volta da fogueira, o menino minúsculo e a mulher magra se posicionam para o ritual do batismo de fogo. Primeiro, de frente para a porta escancarada da casa, onde avistam lá dentro o altarzinho do santo, enfeitado com flores de papel de seda e areia prateada, vindas de Juazeiro do Norte. Os pés direitos se tocam, as mãos direitas se apertam, olham-se nos olhos, sentem a quentura do fogo.

Será que estão muito próximos das chamas?

Escutam o estalido da lenha queimando e sentem-se comovidos pela solenidade do ritual. Entregam-se à celebração mais antiga que o cristianismo. Ignoram sua origem mas repetem os gestos guardados na memória, sem nunca terem ouvido falar em celtas, druidas, solstício de verão, dia mais longo do ano, tempo propiciatório.

A mulher meio índia sorri e começa as falas rituais, todas bem respondidas na ponta da língua pelo meninozinho atento:

– São João disse.

– São Pedro confirmou.

– Que você fosse meu afilhado.

– Que a senhora fosse minha madrinha.

– Que São João mandou.

– Que São Pedro mandou.

– Viva São João!

– Viva São Pedro!

– Viva meu afilhado!

– Viva minha madrinha!

E dão as quatro voltas em torno da fogueira, sempre repetindo as falas sagradas e contratuais, os vínculos entre o plano terreal e divino, assumindo-se madrinha e afilhado, com as responsabilidades e significados da cerimônia. Declaram-se unidos às quatro direções do mundo – norte, sul, leste e oeste –, com o testemunho de céu, fogo, terra e vento.

Entram na casa, sentam em cadeiras de couro, bebem aluá de abacaxi fermentado, comem bolo de massa de mandioca puba. A mulher tagarela, o menino tímido.

– Sua mãe que mandou ou você me escolheu?

– Eu escolhi.

Reponde e sente vontade de disparar na carreira. Em casa, a família espera por ele, desejando que narre o acontecido, tudo o que sentiu. Ninguém é o mesmo depois de um batismo de fogo. Antigamente, as pessoas se batizavam nas noites de São João, um santo celebrado com um cordeirinho e uma bandeira, bem manso quando era criança, valente e com vestes de couro, depois que se tornou grande e profetizava. Um santo reconhecido com outros nomes e poderes, fora do cristianismo: Shiva pelos indianos, Dioniso pelos gregos, Xangô pelos nagôs e geges.

Porém o menino ignora esses conhecimentos. Anseia por um presente de batismo, que a madrinha retarda. Percebendo o desejo do afilhado, ela vai lá dentro à cozinha, de onde retorna com uma rapadura, envolta num papel rústico. Surpreso, ele recebe o tijolo escuro e pesado, e corre cambaleante para casa.

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