Procura-se um personagem | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
2022
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Procura-se um personagem

Quem entrava na casa da minha avó materna, avistava na parede da sala de visitas uma imagem do Coração de Jesus, litogravura suíça, herança de família. Logo abaixo dessa imagem em tons verdes e pretos, lembrando um ícone russo, o retrato do meu avô, Pedro Zacarias de Brito, fotografado dentro do caixão em que o enterraram. Esses dois personagens reinavam absolutos na casa grande e antiga do sítio Boqueirão, no Crato. 

Era impossível não os avistar uma centena de vezes por dia e mais impossível não se sentir olhado, vigiado e protegido por aqueles dois senhores. Minha avó Dália Nunes de Brito professava uma religiosidade popular, que parecia ter sido inventada por ela mesma. Nesse cristianismo sertanejo não aconteceram as sangrentas matanças dos cruzados, nem as fogueiras dos tribunais da Inquisição e nunca se mencionou a usura de Roma, acumulando tesouros ao longo da história. 

Minha avó tinha desapego aos bens materiais e fazia questão de não possuir quase nada, além das terras que meu avô deixara. Os únicos objetos intocáveis naquela casa de portas escancaradas eram as imagens dos santos, a mesinha de altar com a sua toalha de renda de bilros, dois castiçais de vidro e uma jarrinha de porcelana. Ela rezava um rosário às três da manhã, outro ao meio dia e um terceiro ao anoitecer. Valia-se do Coração de Jesus e do marido morto, em todas as agonias. 

Uma vez por ano se festejava o Sagrado Coração, na data em que ele fora entronizado na parede de onde nunca deveria sair. A renovação, como se chamava a festa, acontecia no mês de julho, época de fartura. Os reisados cantavam:

“ Quando entro nessa nobre sala, 

É pelo claro dessa luz

Louvor viemos dar

Ao Coração de Jesus. ”

As mulheres entoavam os benditos, os homens soltavam os fogos de caibro, servia-se aluá de abacaxi, bolo de puba, pão de ló de goma, sequilhos e biscoitos. Tudo modesto e exíguo. Porém, não existia felicidade terrena maior que aquela. 

No Natal, o Sagrado Coração ficava um pouco esquecido e desprestigiado. Minha avó só cuidava do Jesus Cristinho, um meninozinho de madeira, rosado e risonho, vestido numa camisa de seda, esculpido lá longe em Portugal, e recebido de presente da nossa tia-avó Nizinha. Ele diferia de todos os Meninos-Deus que conhecíamos, por ser igual a nós. Debaixo do vestidinho rendado, lá entre as coxas, tinha como todos os meninos, uma pitoca e dois ovinhos. Minha tia Alzeni achava aquilo uma profanação e tentava por todos os meios esconder a sexualidade do Deus Menino. Pensou em mandar castrá-lo, livrando-se da nossa curiosidade. 

Todas as vezes que passávamos diante da lapinha, levantávamos a saia do menino e olhávamos o seu sexo, comparando ao nosso. Era difícil imaginar que aquele camarada deitado nas palhas de uma manjedoura, em tudo semelhante a nós, crescera e se tornara o Senhor onisciente pregado logo acima na parede, vigiando-nos com os seus olhos bondosos, mas severos.

Minha avó confeccionava os enfeites da lapinha com lã de ciumeira e de barriguda. O pouco tempo livre de que ela dispunha, entre os trabalhos e as rezas, ocupava naquele artesanato minucioso, dando vida a carneiros, bois, burros e camelos. As figuras de José, Maria e dos Reis Magos, de louça modesta, eram as mesmas dos outros anos. Mais bonita que a lapinha da nossa avó, só mesmo a das irmãs do alfaiate Zé de Rita, famosas em todo o Crato. 

O ano tornava-se curto para elas construírem a cidade cenário que ocupava quase uma sala.  Havia de tudo naquele universo miraculoso: uma Jerusalém, montanhas, lagos com cisnes e peixes, exércitos de soldados romanos, vilas, currais, bichos domésticos e selvagens, florestas, campos, pastores e pastoras em profusão, anjos e santos, tudo distribuído nos três níveis: o superior, divino; o intermediário e o terreal. Era impossível imaginar-se alguma coisa que não estivesse representada ali.   

O cinema trouxe para o Crato o glamour hollywoodiano e a fantasia dos Natais com neve e pinheiros. As lapinhas perderam o prestígio, como o catolicismo. Fellini anunciou o fim da mitologia cristã, mas teimei em saudar o Jesus pagão da minha infância, em teatro e música, numa festa batizada com o nome Baile do Menino Deus. 

Um dia, convidaram-me no Recife para conversar com uma turma de colégio de classe média. A escola decidira fazer um espetáculo de Natal e os meninos, em torno de vinte, escreveriam o texto. Queriam minha ajuda, um empurrãozinho. Aceitei e fui ao encontro. Eram crianças inteligentes, com uma certa automação dos jogos de computador e vídeo games. Propus um começo. Anotaríamos a lista dos personagens do Natal, os mais importantes.

  Gritaram todos ao mesmo tempo. Pedi ordem. Surgiram os nomes, as figuras famosas das decorações natalinas dos shoppings: Papai Noel, o trenó, as renas, a árvore de natal, a neve. Estranhei as respostas. Insisti. Lembraram os gnomos, os duendes, a oficina de brinquedos do Gepeto e os anõezinhos de Branca de Neve. Assustei-me. Não acreditava no que ouvia. Não é possível! 

– Quem são os verdadeiros personagens do Natal, aqueles, sem os quais nada teria acontecido?

Todos concentrados. Espera aí… espera aí… e nada. Não vinha um nome. Apelei. Lembrem pelo menos do principal, o mais importante, o que deu origem à noite de Natal. Por fim, um gênio gritou: já sei. Que alívio! 

– Já sei!

E com um ar vitorioso anunciou:

– O peru da Sadia

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