12 jun O câncer da política brasileira
Às vezes, tenho a impressão de que acordei dentro de um pesadelo, na pousada ao lado d’O castelo de Kafka, no planeta Marte de Ray Bradbury, ou em Pompeia, durante a erupção do Vesúvio. Mas estou no bairro de Casa Amarela, no Recife, no Brasil.
Em dezembro de 2015, quando foi aceito o pedido de impeachment de Dilma Roussef e teve início o longo processo que terminou em agosto de 2016, com a saída da presidente e a posse de Michel Temer, o giro de muitas vidas se acelerou numa espiral para baixo. Vieram o governo Temer, os quatro anos de Bolsonaro e a pandemia da Covid-19, com suas quase 700 mil mortes entre 2020 e 2022.
Na mitologia de alguns povos africanos, Orixalá foi encarregado de criar o homem. Ele tentou fazê-lo com fogo, vento, madeira, mas fracassou. Por fim, decidiu criá-lo da lama do pântano, onde habitava Nanã Buruku. Ela cedeu o barro, mas cobrou que todas as criaturas retornassem à lama original, ao fim da jornada na Terra.
A sensação que tive nesses quase oito anos passados foi a de que a lama, que se guardava sob a água de aparência limpa e transparente, ganhou a superfície, mostrou seu poder e força, revelou-se. Parece o sonho do faraó do Egito, interpretado por José, em que sete vacas magras brotam do chão e devoram sete vacas gordas; sete espigas secas destroem sete espigas cheias de grãos. O que era latente igual a células cancerosas, esperando a oportunidade de adoecer e matar o corpo saldável, explodiu com extrema força e poder e não parou mais de destruir.
Nossa história falseada desde o princípio da invasão portuguesa foi narrada pelos dominadores. Também houve quem escrevesse os acontecimentos se aproximando da verdade, mas os escritos não foram adotados nas escolas, sofreram perseguição e repúdio dos que detinham o poder.
Eleito um novo presidente no Brasil, muitos acreditaram que tudo seria diferente. Engano, a lama do pântano continuou aflorando à superfície, como as lavas de um vulcão. Recentemente, ouvimos a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, recusando abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. Marina alertou com muita agudeza que o povo brasileiro elegeu o presidente Lula, mas parecia que o Congresso queria reeditar o governo Bolsonaro.
O Congresso não apenas deseja, já está reeditando o governo anterior, apoiado por grande parte da imprensa, banqueiros, empresários, Forças Armadas, políticos, ministros de Lula, médicos e cinquenta por cento da população declarada bolsonarista nas últimas eleições.
Eliane Brum escreveu que se o ataque do Congresso ao futuro das crianças for bem-sucedido, acabou-se futuro para todas as pessoas, porque a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal, a Mata Atlântica, a Caatinga, o Pampa não sobreviverão a um segundo governo predatório. E, se esses enclaves de natureza não sobreviverem, acabou até mesmo para os grandes operadores do agronegócio, pois sem chuva não tem produção, não tem exportação, não tem lucro. Não é exagero. É o que mostra a melhor ciência. E clama: entendam: estamos no limite e não será possível esticá-lo.
A lama que brota do pântano não está nem aí para o nosso ocaso. Poucas pessoas se manifestam, ninguém ganha as ruas, não há protestos das multidões. Todos parecem hedonisticamente satisfeitos e conformados com as mudanças operadas no próprio corpo, através das academias, dos suplementos prescritos por nutrólogos, dos hormônios, do Botox, das cirurgias plásticas e tatuagens mutiladoras. Escandaliza tanto hedonismo e narcisismo, a ablação do pudor. As cidades se enchem de academias, há farmácias há cada 100 metros, petshops e clínicas veterinárias. Eis o Admirável mundo novo, reproduzido em todas as classes sociais.
Foi sempre assim? Sim, foi. Apenas agravou-se. A indústria do consumo, da doença (não acho que seja da saúde) e do embelezamento se aperfeiçoou. É preciso mudar o corpo a qualquer custo, mas bem poucos se ocupam em zelar pelo corpo enfermo do planeta.
Até o senador Randolfe Rodrigues, estimado pela esquerda, aliado e líder do Governo Lula, não acatou a negativa de licença do Ibama, rifou o meio ambiente e enfraqueceu a ministra Marina Silva. A Petrobrás também é favorável à perfuração de poços na Amazônia e vai recorrer contra o veto. O presidente Lula precisa manter seu compromisso com a proteção da floresta e o combate ao aquecimento global.
Ele prometeu demarcar as terras indígenas, mas só homologou algumas poucas, que se acham com os processos em andamento. Lula governa sob pressão de um Congresso com maioria anti-indígena e pró-agronegócio. As lideranças indígenas falam que Lula não se manifestou contra o Marco Temporal porque tem medo do Congresso.
A lama do pântano assusta, mas é necessário perder o medo e enfrentar o inimigo.
Sim, inimigo, não é outra a palavra.
Ilustração Vito Santiago
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