08 ago Eu nasci naquela terra, não me leve para o mar
Às vezes imagino ser possível retornar a sessenta anos atrás, às fazendas ou engenhos onde vivi a infância e a adolescência. De volta ao presente, me parece impossível que o mundo sertanejo tenha desaparecido de forma tão radical, em tempo tão pequeno. Igual aos versos do poeta Fabião das Queimadas, ele “já morreu, já se acabou e está fechada a questão”, embora alguns poetas e ficcionistas teimem em representá-lo como não é mais.
As estatísticas são irrecusáveis. O campo se esvaziou, as pessoas migraram para a periferia das cidades. Falando em números, apenas quinze por cento delas teimam em viver nos interiores, sobrevivendo de maneira precária, com ajuda de programas do Governo. Deixamos de ser um país rural e nos tornamos urbanos. No Rio de janeiro nem se considera mais que haja população interiorana. Tudo virou cidade e periferia.
Não me refiro ao agronegócio, concentrador de riqueza e espoliativo do meio ambiente, praticado em outras regiões brasileiras, pois difere da vida mais antiga, arcaica do povo nordestino. Também não me refiro ao êxito da agricultura familiar e do movimento dos trabalhadores sem-terra, mais próxima do que se vivia e praticava no passado. Se fosse descrever no tempo verbal presente do indicativo os costumes da fazenda dos meus pais, no município de Saboeiro, sertão dos Inhamuns, ou nos engenhos de tios e avós, no Cariri cearense, seria algo parecido ao que se segue:
As mulheres se levantam às três horas da madrugada, ao primeiro cantar do galo. Nunca dormem antes das oito horas da noite, pois há muito trabalho a fazer. Mal se acordam, lavam o rosto e as mãos, prendem os cabelos, vestem roupa limpa e começam a jornada sem descanso, pois há galinhas pondo ovos, vacas dando leite, algodão para fiar e tecer, panos estendidos nos varais precisando ser engomados.
São elas que emendam as histórias ouvidas nos terreiros, nos roçados e na cozinha e as transformam em outras narrativas para onde confluem saberes do mundo, terminam sempre com uma nota de indefinição, se prolongando até as fronteiras do mistério, infinitas e misturadas como os temperos nas panelas de carne e feijão, que cozinham e depuram ao calor do fogo. As narradoras escutam, guardam, ruminam semelhantes às vacas no curral e depois passam adiante. Preservam a essência dos enredos fugidios, instáveis, ambíguos ao ponto da incoerência, porém vivos e eternos.
A cozinha é a colmeia de onde os enxames voam para todos os lados, criando a vida social, organizando o trabalho, zelando pelo bem-estar da família.
Se havia festa, três dias antes os homens tinham arrancado as mandiocas, lavado para tirar a areia e deixado de molho em grandes potes de barro.
Depois que as manivas apodreceram, descascaram e trouxeram para as mulheres findarem o trabalho. Agora peneiram a massa em urupemas de palha, tecidas por elas mesmas com as folhas da carnaúba, depois lavam em sacos de algodão, espremem e botam para escorrer dependurados. Quando a puba está bem pastosa, preparam bolinhos achatados nas palmas das mãos, e deixam secar ao sol, em jiraus ou nos telhados baixos dos alpendres. Depois de secos, eles se tornam as carimãs, usadas nos mingaus, papas e bolos. Duram muito tempo, se guarda em malas de couro, forradas com panos limpos, lavados e corados ao sol.
Se há milho verde, colhem-se as espigas no ponto certo, nem muito verdes, nem maduras demais, pois não é para fazer a pamonha que foram escolhidas. A canjica fica pronta e é arrumada em travessas.
As mulheres mais jovens dessoram a coalhada dos queijos de coalho prensados, para se tornarem resistentes e duradouros. Deixam amadurecer como os parmesãos em tábuas penduradas por cordas dos caibros altos. São as queijeiras. Para fazerem os queijos, largam o tear onde tecem madapolões, redes e cobertas. Outra mulher arruma num alguidar de barro o almoço dos homens que trabalham nos roçados: cuscuz de milho, feijão, toucinho e carne. Alguns pedaços de charque são espalhados dentro do farnel, para ver quem tem a sorte de achar.
Lá na roça, os trabalhadores se sentam em torno do alguidar e comem todos ao mesmo tempo, enfiam colheres de pau na vasilha ou servem-se com as próprias mãos. Às vezes ganham rapadura e queijo de sobremesa, um manjar do céu. Mas garantido mesmo é a água no gargalo da cabaça.
Comunga-se o trabalho e o pão nosso de cada dia.
O sertão não obedecia às leis do senhor crucificado no altar, onde o padre celebrava missa. O sertão tinha suas próprias leis. Nele, o tempo e a matéria trabalhavam a favor das misturas, do improvável, mesmo que no futuro essa miscigenação fosse condenada pelos homens de ciência e poder, pelos eugenistas, como degradante e enfraquecedora da espécie humana.
ILUSTRAÇÃO VITO SANTIAGO
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