O ano em que eu torci contra a seleção brasileira | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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O ano em que eu torci contra a seleção brasileira

Na copa de 1970, eu estudava medicina no Recife. Dividia um apartamento com sete colegas, do Cariri e dos Inhamuns. Os estudantes do sul do Ceará escolhiam o Recife como destino. Era histórico, desde que José Martiniano de Alencar, o padre, veio formar-se no Seminário de Olinda, e daqui saiu levando as ideias republicanas da Revolução de 1817. Rapaz danado esse padreco filho de Dona Bárbara de Alencar – a primeira presa política da história brasileira –, pai do grande romancista, injustamente maltratado pelos modernos.

Havia um acordo tácito entre os universitários politizados à esquerda de não se torcer pelo Brasil. A Ditadura Militar, no auge da repressão pós AI-5, transformara a seleção brasileira e a copa num instrumento de propaganda do Regime, um meio de cegar os olhos das pessoas para os horrores que praticavam. Percebíamos revoltados como os milicos manipulavam os resultados dos jogos a favor deles.

O desejo de conquistar a taça Jules Rimet era um sonho nacional acalentado há anos. A vitória significaria a felicidade absoluta, que tudo estava muito bem. Usava-se o patriotismo futebolístico, uma invenção brasileira, a favor de quem usurpava o poder. E nós, os mais politizados, os barbudos ateus comunistas percebíamos isso com revolta e fincávamos pé numa decisão: não veremos nenhum jogo e vamos torcer contra a seleção brasileira.

Amarga escolha. Recife, a cidade mais festeira do Brasil, cobriu-se de verde e amarelo. Era um carnaval a cada vitória que nos aproximava da taça. Ninguém queria saber de nada a não ser de futebol, os milicos podiam matar e esfolar metade do país que não se tomava conhecimento.

Eu parecia um monge cheio de luxúria, fazendo voto de castidade; um glutão em dieta vegetariana ou um alcoólatra indo às reuniões do AA, enquanto os amigos biritavam no bar da esquina. Resistia bravamente, cada jogo terminado era um alívio, embora o Brasil fosse vitorioso e nosso desejo de brasileiros diferenciados da massa manipulada era o de que o Brasil perdesse. Ah, mentira besta, a maior de toda minha vida.

Junto ao imóvel que alugávamos, um prédio de quatro apartamentos estilo anos 50, corria o Capibaribe, o rio majestoso que todos nós cearenses sabemos com inveja que se junta ao Beberibe no Recife, para formar o oceano Atlântico. E por cima do rio, a Ponte da Madalena, aonde uns pescadores bêbados sem futuro, moradores de rua, vinham jogar as redes e os anzóis para pescar coisa nenhuma. Pescavam cachaça com a língua, o palato e a garganta, no gargalo de uma garrafa. Era na companhia desses cidadãos altamente qualificados, politizados tanto quanto eu, que buscava consolo enquanto a bola rolava e os gritos de gol troavam.

Na final contra a Itália, quase morro. Sentia-me tão desorientado que me arrisquei a beber a mistura de álcool e água dos meus companheiros pescadores, com nojo do cuspe seboso que eles deixavam na boca da garrafa. Fazer o que? Era a minha opção política e não podia voltar atrás. Entrar no apartamento com o rabo entre as pernas e aguentar o achincalhe dos colegas, que escarneciam meus arroubos vermelhos? Não! Nunca! Preferia me atirar da ponte, mesmo sabendo que o rio era bastante raso e no máximo eu me atolaria na lama e seria incomodado pelos caranguejos.

Descalço, sem camisa, apenas com um calção de jogador – Epa! Que deslize! Ainda bem que nenhum companheiro da patrulha ideológica me viu –, eu era a imagem da desolação, um fantasma quase embriagado. A cada grito de gol e estrondo de fogo eu ficava de orelha em pé, querendo saber o resultado do jogo. Quatro a um na Itália?

Quatro a um, tem certeza? É claro. Você foi o único brasileiro que não assistiu à partida. Cadê seu patriotismo? Meu patriotismo bêbado com a mistura de álcool e água se espantava com o reboliço de fogos, o movimento de carros e ônibus nas ruas antes desertas, sem um pé de gente, com transporte de graça para todos irem comemorar no centro, arroubo generoso do prefeito nomeado sem eleição e do governador biônico, porém de graça, do jeito que o povo gosta.

De repente, lá estou eu sem camisa, descalço, um calção de jogador, a cabeça etílica, entrando num ônibus pela porta da frente, na Rua do Paissandu, quando ainda era uma das mais belas do Recife, cheia de palacetes e casarios azulejados. Vou, sou levado, danço feito maluco, acompanho uma orquestra de frevo, abraço desconhecidos, beijo o pavilhão nacional mil vezes, grito Brasil!, Brasil!, e continuo assim até que a bebedeira passa.

Caio em mim, sou um fracasso, uma vergonha política, tudo por causa dessa porcaria de futebol.

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