29 ago E se Deus não fosse brasileiro?
Vi a foto de uma enfermaria de hospital americano durante a epidemia de gripe espanhola, que matou mais de vinte milhões de pessoas, nos anos dezoito e dezenove do século passado. Na imagem em preto e branco, aparecem dezenas de camas arrumadas em duas fileiras, num pavilhão comprido, em que mal se enxerga o fim. Não há revestimento de azulejo nas paredes, o que revela que a enfermaria foi improvisada. Como se não bastasse a calamidade da primeira guerra mundial, veio outra em seguida. Quem escapou de morrer por um balaço de canhão ou fuzil, corria o risco de não sobreviver ao ataque do vírus da influenza.
A representação do sofrimento pela gripe não lembra em nada as terríveis pinturas a óleo da peste bubônica, feitas por artistas da Idade Média. A ausência de cores fortes como o vermelho e o amarelo talvez contribuam para essa diferença. Na foto americana, o preto e o branco, a sombra e a luz sugerem silêncio e calma, uma quase placidez. Mas será apenas pelo efeito das cores e da luz que os artistas alcançaram comunicar gradações diferentes do horror? No retrato da epidemia espanhola a ordem do ambiente, a disposição dos móveis e a postura de médicos e enfermeiras também contribuem para essa aparente serenidade. Os pacientes estão deitados em camas, com livros abertos nas mãos, parecendo concentrados na leitura. Ao vê-los, ninguém imagina que sofrem de febre, dores musculares intensas, cefaléia, falta de ar e outros sintomas.
Por que diferem tanto as imagens? Os pintores medievais viam epidemias, guerras, doenças e morte como sobrenaturais, castigos divinos por pecados cometidos. Num plano, anjos tentam salvar os justos e demônios arrastam os maus para o inferno. Noutro, devassos são cozinhados em caldeirões com azeite fervendo ou agonizam empalados. A sexualidade aparece disforme e patológica, a Igreja Católica reprimia o Eros e suas manifestações. Nada mais adequado que simbolizar na peste bubônica o castigo pelos excessos. No terceiro plano de um quadro, no mais elevado céu, Deus contempla os horrores do mundo terreal, interferindo vez ou outra através de seus anjos, a favor deste ou daquele piedoso.
Não lembro se existe na fotografia americana, no alto de alguma parede, a imagem do Cristo. Esse crucifixo tão comum nos pavilhões dos hospitais brasileiros, mantidos na maioria por instituições católicas, não deveria existir nos Estados Unidos, um país em que predominou o protestantismo, sobretudo calvinista. Na foto, também é possível a leitura de uma hierarquia, diversa da que descrevemos na pintura medieval. Já me escapam detalhes, por conta do tempo em que a vi. Mas, lembro que os pacientes estão deitados em camas de ferro, supostamente pintadas de branco, e acima deles, firmes e de pé, os médicos e as enfermeiras. São eles os representantes de uma nova hierarquia de poder, não mais religiosa, a Ciência. Somente ela explica as doenças e pode curá-las.
É possível que o artista que retratou a cena desejasse expressar a nova ordem do mundo, num país que desde a metade do século dezenove cantava através dos seus poetas as conquistas do progresso, da tecnologia e das ciências naturais. Deus até poderia agir, mas se o fizesse, seria através de mapas e roteiros traçados no plano terreal, em que tudo se explica nos fenômenos físicos, químicos e biológicos.
Na fotografia, feita num hospital do Kansas – mas sua existência já não possui importância, pois um raciocínio se construiu em torno dela, lhe atribuindo realidade –, o que mais impressiona é a serenidade dos pacientes entregues à leitura, numa representação da busca do conhecimento. O fotógrafo parece conhecer a pintura medieval e sua escatologia, o terror em que a Igreja Católica manteve subjugados os seus fiéis. Professo de uma nova religião científica, ele tenta nos convencer de que na doença já não existem dores, esgares, nem pânico, e que ali todos esperam a cura, cheios de fé em um novo deus científico.
Por que a lembrança dessa fotografia retornou ao meu consciente, se ela estava guardada no esquecimento? Acho que me impressionou a imagem de americanos lendo em locais públicos. Num avião de Nova Iorque para San Francisco, esperei quase uma hora pela decolagem. Sentados nas poltronas, os duzentos e vinte passageiros liam livros, jornais e revistas, trabalhavam ou se divertiam em laptops, ouviam música nos iPods. Nada foi informado pelo comandante de vôo e ninguém se agitava nem fazia perguntas. Acho que o único ansioso era eu. Após cinqüenta minutos de espera o comandante pediu desculpas pelo atraso e informou que um nevoeiro impedira a decolagem, e que agora seria dado início aos procedimentos de partida. As pessoas continuaram em suas atividades. Perguntei-me se elas também sentiram angústia durante esse tempo e pareceu-me que não. Acho que além de acreditarem na tecnologia, elas também confiavam na ação do Estado. Talvez pensassem que nada poderiam fazer além de esperar. Que em qualquer situação alguém estaria agindo na defesa dos seus direitos, cuidando em protegê-las e respeitá-las.
Como há muito tempo perdi a fé em Deus e no Estado Brasileiro, eu sofri. E é bem possível que continue sofrendo pelo resto dos meus dias.
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