15 jan A dor nossa de cada dia
Numa das portas do meu guarda-roupa na Casa do Estudante, no Campus da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, eu preguei uma foto em preto e branco, recortada de um jornal da cidade. A imagem havia sido registrada num campo de concentração nazista, talvez Auschwitz ou Treblinka, não lembro ao certo, o horror era o mesmo em todos os lugares de extermínio. Homens no último estágio de desnutrição, vestidos em uniformes listados, uma estrela de Davi ao peito, os crânios raspados, os ossos salientes, olhavam esbugalhados. Em torno, catres imundos, onde deviam proliferar insetos. Um dos homens esboçava sorriso doce, talvez o rictos da morte próxima.
Abaixo do retrato arrepiante, que levei comigo em várias mudanças até que se extraviou, escrevi: nunca permita, nunca pactue.
Eu não passava de um garoto de 19 anos, cheio de ideais socialistas, e sentimentos cristãos inculcados pela mãe e pela avó materna. Na nossa casa dos Inhamuns e do Cariri, todos entravam, falavam, choravam, comiam, levavam algum alimento ou roupa quando iam embora, recebiam atenção de minha mãe, que largava as tarefas domésticas para ouvir e consolar. Meu pai enchia a despensa da casa e mamãe esvaziava, dando aos mais necessitados.
A lembrança da imagem de Auschwitz (ou seria Treblinka?) me veio de uma foto enviada por um amigo, essa que reproduzo. O texto ilustrando não é meu. Mas amplio a dedicatória a todos os brasileiros, entre os quais me incluo. Onde foi parar o meu horror adolescente? O que tenho feito para impedir a proliferação desses campos de extermínio e abandono do povo brasileiro, de crianças e adolescentes? O que faço para não permitir tamanho horror, nem pactuar com ele? Abro as portas da minha casa como mamãe cristãmente fazia? Abro o meu coração?
É fácil comover-se com as tragédias ocorridas em outros lugares, ou noutros tempos. Dizemos: se eu estivesse lá, não permitiria que acontecesse. Se fosse comigo, seria bem diferente. Por que eles não reagem, são mais numerosos? Por que ficam tão passivos? Eu morreria lutando, mas não deixaria acontecer, afirmamos convictos.
Está acontecendo, acontece todos os dias, debaixo dos nossos olhos. A miséria rasteja ao nível do chão, da sarjeta, como as poças de lama que saltamos ou contornamos. Era assim com os judeus da Polônia, é assim com os pobres do Brasil. Ao nível do chão a miséria se torna mais miserável, tenta não ser visível para os que olham de pé, apenas à frente. Vejam a foto comovedora dessa criança. Quando a miséria não se oculta por ela mesma, na humildade de ser miséria, surgem os que tentam ocultá-la com tapumes.
Recebi imagens das nações indígenas com os apelos: estão invadindo nosso lar; precisamos da sua ajuda; lute por nós; mobilização nacional contra o genocídio indígena; apoie antes que seja tarde.
– Nunca pactue, nunca permita, escreveu o adolescente de 19 anos, na porta do seu guarda-roupa. O que faço para não permitir, nem pactuar?, me pergunta já velho de 67 anos, atônito com os descaminhos da nova política brasileira. E a resposta parece sempre a mesma: lutar, lutar, lutar com os recursos que estiverem ao alcance da mão e da voz.
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