25 jan A carne vai e todos seguem atrás dela
Quando eu tinha cinco anos vi o Diabo em carne e osso. Não era propriamente o Malino, o Satanás, o Fute, mas um homem comum, que nem chamaria atenção se não usasse capa vermelha e preta, rabo comprido e chifres. Eu acabara de chegar ao Crato, vindo dos Inhamuns, aonde as notícias do carnaval eram remotas. No sertão, meu pai sintonizava a Rádio Clube de Pernambuco num aparelho Philips – comprado por uma fortuna –, que causou verdadeira revolução entre as pessoas acostumadas a escutar aboio, toque de viola e sanfona. O silêncio habitual desapareceu em meio às marchas de bloco e frevos canção.
O rádio fabuloso era alimentado por uma bateria de carro e, graças ao engenho do meu pai, o mundo entrou porta adentro na nossa casa longe dos centros urbanos. Um desassossego para minha mãe, que precisava servir café e dar atenção às visitas, chegadas toda noite para conhecer a geringonça falante. Temerosas, elas olhavam a invenção do terreiro, espreitando com medo. Perguntavam como era possível caber tanta gente numa caixa tão pequena e qual o tamanho das pessoas espremidas ali dentro.
O homem fantasiado de Tinhoso, cheirando lança perfume e dando voltas na pracinha do Crato, só assustava meninos matutos como eu, que ainda não conhecia o carnaval.
O encontro inesperado com o Cramulhão carnavalesco botou meus neurônios para funcionar e eles entraram em pane. Continuei sem compreender o que se passara comigo. Não tinha nenhum espelho por perto, mas acredito que saiu fumaça pelos meus ouvidos e narinas, o que poderia significar que eu tinha sido contaminado. Pelos poderes de Lúcifer? Não, pelo carnaval, o que dá no mesmo.
As informações davam nó dentro da cabeça e eu buscava compreender como o Azarado, que me ensinaram a temer e odiar, de repente se tornava bonzinho, palhaço, dando pinotes e correndo atrás da meninada. Meu pai até me contara a história de um cantador que venceu O Cujo numa peleja de viola. Por conta de que desordem O Moço estava ali em unhas e dentes e não carregava ninguém para o inferno, não se danava com as almas pecadoras?
Por conta do carnaval, essa festa que vira o mundo às avessas.
Enquanto a Igreja Católica esperava a quarta-feira de cinzas para vestir o roxo da quaresma, guardar jejum e abstinência de carne durante quarenta dias, os endemoninhados se entregavam à esbórnia, na festa em que vale comer carne, muita carne, de todos os modos, crua e cozida.
Acho que amei o carnaval desde esse encontro, pelo absurdo representado nele. Amo um carnaval que não tem nada a ver com o frenesi compulsivo em que o transformaram. Uma festa com o Demo reinando solto e confundindo a ordem estabelecida do mundo.
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