22 maio Crônica de um Recife exilado
(em memória aos 50 anos do assassinato do Padre Henrique)
Às duas da madrugada ninguém conseguia determinar a intensidade e direção de um vetor de força, apagara da memória as equações lineares de movimento e sentia-se incapaz de dizer o valor do número PI. Estudávamos desde as vinte horas, no apartamento quente e sufocante de um colega de Teresina, na rua Barão de São Borja.
Em torno, velhos casarões ainda se mantinham de pé, alguns com a azulejaria exibindo sinais de vandalismo, saques para venda em antiquários inescrupulosos. Rua Velha, da Glória, do Progresso, das Ninfas, da Soledade, do Paissandu… A Boa Vista ocupada por moradores que não os de rua, no momento exato de receber um projeto de reforma urbanística e de habitação, como o das cidades europeias, antes que viesse a sofrer a degradação de hoje.
1969, um ano depois do Ato Institucional Número 5. Ano em que assassinaram o padre Henrique e balearam o estudante de engenharia Cândido Pinto. Alheios a esses conflitos políticos, os dois garotos cearenses e um piauiense, aspirantes ao curso de medicina, saíam para o Recife adormecido, ansiosos pela brisa marinha, que soprava na rua da Aurora.
Os perigos? Viviam obcecados pelo vestibular, a primeira lei de Newton garantia que todo corpo mantinha o estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que fossem aplicadas forças contrárias sobre ele. A truculência da ditadura militar gerava essa oposição. Mas os três rapazes provincianos se moviam no sentido único de alcançar uma vaga, de preferência na Universidade Federal de Pernambuco.
A cidade do Recife, deslumbrante aos olhos de quem nunca avistara rio, pontes, igrejas barrocas e palacetes era uma tentação. Descendo pela Conde da Boa Vista, caminhando e cantando sem qualquer lembrança de Geraldo Vandré, escutando vozes e passos ecoando entre os edifícios, chegavam à esquina do Cinema São Luiz, onde pescadores arriscavam a sorte com anzóis e redes. Os hippies da contracultura mangue só dariam o ar da graça lá pelo final de tarde, ávidos de atenção e escândalo. Conhecidos e emblemáticos, repetiam-se em seções do cinema de arte Coliseu, no Alto da Sé de Olinda, em shows no Teatro do Parque, nos vernissages de artistas plásticos.
A margem do Capibaribe, no Cais da Aurora – a San Francisco pernambucana – nunca mais foi a mesma sem a fauna embalada pelo toque desafinado de violões e o cheiro transgressor da maconha. Recife romântico dos crepúsculos das pontes, dos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses, que assistem agora aos movimentos das ruas tumultuosas, que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas do Pacífico, Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do rio. Eu diria beleza caótica, corrigindo os versos de Joaquim Cardozo.
O primeiro elétrico para Casa Amarela, somente às cinco da manhã, com a cidade despertando. Depois de conversar besteiras com os pescadores e de recusar a cachaça bebida em latas, os dois garotos seguiam para a Av. Guararapes, outro orgulho da metrópole, onde deitavam em bancos de cimento ou nas muretas que ladeavam o rio, esperando o sol e o elétrico.
Hostil e acolhedor, o Recife recebia levas de imigrantes, a cada estiagem prolongada. Gente do Nordeste pobre. Sempre havia o consolo das águas poluídas do Capibaribe, uma palafita sobre a lama dos manguezais e caranguejos para chupar as patas. Na secura sertaneja, coisa nenhuma. Pelo Recife ficavam, uns procurando estudo, outros desejando emprego ou biscate, na convivência da cidade masculina, paterna, dura e reta, apesar das curvas sinuosas do rio e do traçado das pontes.
Exilando-se de bairros tradicionais como Santo Antônio, São José, Boa Vista e Ilha do Leite para os aglomerados urbanos das praias, o Recife sofreu migrações internas que o tornaram pobre e decadente. Seus novos poetas, cineastas e músicos buscam o lirismo no caos. E ainda encontram onde sugar poesia, como a inesgotável carne dos caranguejos.
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