26 abr Onde se esconde meu novo romance?
“Pelas janelas do trem eu não enxergo quase nada lá fora. Os vidros sujos e riscados tornam o olhar opaco. Faz quarenta e cinco anos que fiz esse mesmo trajeto, viajando do Crato para Fortaleza. Mudamos bastante desde então: o lugar e eu. Acumulamos entulhos. A paisagem encheu-se de lixo, enfeiando os cajueiros, mangueiras, pitombeiras, pequizeiros, cajazeiros, pés de seriguela. As pessoas nem sentem que se afogam nas toneladas de lixo. Eu também me reviro entre os pensamentos que juntei, muitos, um lixo bem mais difícil de ensacar e deixar por conta do caminhão de coleta”.
“Quando saí pro Recife, tinha um sonho de escritor, debaixo do projeto de médico. E certa ingenuidade de alcançar a sabedoria. Hoje, sábio pra mim é o homem que pensa e busca a ética. Tento descobrir como os vidros do trem foram riscados. É o mesmo que me revirar por dentro, tentando compreender minhas impressões do mundo. Sei lá como fui riscado! Sei apenas que estou cheio de ranhuras.”
“Caminho pelos lugares de peregrinação em Juazeiro, cenário do romance que tento escrever. Na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, as pessoas rezam. Há uma preguiça na articulação das palavras, talvez por conta do sol forte, do calor, do excesso de luz, do tédio. Sou possuído pela mesma preguiça, anoto o que vejo com desleixo, também me enfado com as palavras. Escrever é a minha reza. O caminho para o céu com que sonho também é árido. Sinto desejo de deitar-me num banco, mas as vozes me parecem tão mentirosas, que não suportarei ouvi-las por muito tempo. Os escritores também se ocupam com mentiras. Mas há o cansativo esforço de torná-las acreditáveis.”
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