28 jan Linhas de força
Amigas, amigos, segue uma chamada para o Carnaval. Nada de corpo mole, se avexe porque na Mata Norte os maracatus rurais já estão fazendo as sambadas.
O rapaz amarra o lenço colorido na cabeça, aperta os nós sob o queixo, e involuntariamente olha para frente como se procurasse a ajuda de um espelho. Ficou bem, digo para mim mesmo, firme na posição de observador sem câmera fotográfica, um voyeur carnavalesco, que não brinca, só contempla. Está bonito, apesar dos olhos congestos pela cachaça, e dos dentes estragados, alguns faltando. A camisa aberta revela que ele não aderiu ao gosto dos mais jovens, depilar o peito e o abdome. Também não aparou as sobrancelhas e o corte do cabelo pintado de louro é tradicional.
A caboclada se veste no meio da rua, os passantes reparando curiosos. Brincam entre eles, soltam pilhérias, tentam descontrair. Chegaram em dois ônibus velhos e desconfortáveis, sem refrigeração, comprimidos em meio aos adereços pesados. A maioria saiu de casa envergando a indumentária de baixo: o ceroulão, a calça de franjas, presa aos joelhos por elásticos, a blusa estampada de mangas longas. No passado, segundo a lenda, teriam bebido algumas talagadas de aguardente com pólvora, ou a jurema. Um pequeno espelho corre entre as mãos calosas pelo manuseio da foice, no corte de cana. Retocam a pintura vermelha do rosto com batom, pois já não se usa o preparo de urucum.
Ajudam-se na hora de colocar o surrão, forrado com pelo sintético no lugar da lã de carneiro, e com um número ímpar de chocalhos, para não atrair azar. Depois vestem a gola, bordada de lantejoulas, miçangas e vidrilhos, um fetiche que se reborda todos os anos e se oculta como segredo de caboclo. Por fim, o chapéu confeccionado com milhares de fitinhas de celofane, os óculos escuros e o cravo branco mastigado entre os dentes.
Antes que o rapaz apanhe a lança e saia para o desfile, eu me aproximo dele. O cortador de cana da Zona da Mata Norte de Pernambuco, indivíduo comum, anônimo, calejado no convívio com a pobreza e a violência, se transformara numa entidade, diante dos meus olhos. Quem é esse? Chego perto, ousadamente afasto a cortina de celofane que recobre seu rosto e falo da minha surpresa e deslumbramento com o que acabo de testemunhar. Ele não compreende o que eu digo, me encara com surpresa e se afasta agitando os chocalhos do surrão.
São numerosos os maracatus com brincantes de todas as idades. Renovam-se através dos jovens e das crianças, que incorporam ao brinquedo seus cabelos de cortes extravagantes, pintados de rosa, azul, verde, amarelo, e dourado, um jeito diferente de falar e as novas jingas do corpo.
Em 1938, Mário de Andrade enviou uma equipe a Pernambuco e à Paraíba para registrar cantos, danças e rituais que ele considerava em extinção. Quase 80 anos depois percebemos o quanto caboclinhos e maracatus se multiplicaram, provando a capacidade de resistência e transformação das culturas populares, embora continuem convivendo com as mesmas ameaças identificadas pelo escritor: o preconceito, as intervenções do poder público e a perseguição contra religiões de origem indígena e africana. Entre os pernambucanos, observou-se que o vínculo dos maracatus e caboclinhos com o culto aos orixás e à jurema serviu para fortalecer essas culturas, pois lhe conferem um caráter não apenas de brincadeira, mas também de sagrado. É comum que os maracatus nação tenham como sede as casas de santo, e seus reis e rainhas sejam babalorixás e ialorixás.
No ano em que faço minhas anotações, sentimos a ausência das tradicionais nações Leão Coroado, Indiano e Elefante. Percebemos crescer a força feminina nos batuques, a consciência e o orgulho de ser negro, a afirmação da língua africana, antes camuflada na língua dos brancos. Antigamente, a religião católica e o Estado demonizavam os rituais afros. Os evangélicos, pentecostais e parapentecostais assumiram o lugar de perseguidores, doutrinadores e aliciadores, o que representa ameaça mais preocupante do que foi percebida por Mário de Andrade, em 1938.
A guerra foi declarada. Os pregadores da “Palavra” não toleram camuflagens nem sincretismos. Monoteístas radicais, sem cultuarem divindades femininas, a Universal do Reino de Deus, Assembleia de Deus, Testemunhas de Jeová, Quadrangular, Deus é Amor, Nova Vida, e mais uma centena de outras, empunham a Bíblia, vociferam e agridem os praticantes de outras religiões, incendeiam casas de santo.
A prefeitura do Recife homenageou maracatus e caboclinhos, o batuque negro, o toque perré dos índios e um clube tradicional, o Pão Duro. As agremiações carnavalescas formadas por trabalhadores urbanos, carvoeiros, varredores, lavadeiras, feirantes, caixeiros, lenhadores, espanadores, ferreiros, engomadeiras e até parteiras, as chamadas corporações de ofício, mostram sinais de decadência. No vaivém desses clubes e troças, seguidos por vadios, moleques de rua e capoeiras, acompanhando bandas de música ou orquestras de metais, nasceram o frevo e o passo pernambucano.
As corporações enfraqueceram ou deixaram de existir, minguaram suas orquestras. Surgiram outros cortejos no seu lugar, talvez menos populares, sem afinidades corporativas. Alguns são criações de produtores culturais, com o olho no mercado e no lucro. Muda a feição do carnaval. Vínculos se desfazem, como o de clubes com trabalhadores. Outras afinidades se fortalecem, como as dos maracatus e caboclinhos com os cultos afro-ameríndios. É a dinâmica da cultura. Não se sabe quem ganha ou quem perde.
A classe média e os ricos continuarão brincando o carnaval apartheid, em camarotes climatizados, onde se bebe uísque 8 anos e olha-se os populares de cima. Era assim nas igrejas católicas, os negros assistiam à missa do lado de fora. A mestiçagem de que fala Gilberto Freyre é real, basta conferir nas ruas do Brasil. Os brancos privilegiados e apartados também são reais e prosaicos. Não se vestem com o aparato divino de um caboclo de lança.
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