Assombração de Carnaval | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Assombração de Carnaval

O carnaval do Recife é mesmo um assombro. Nele se revelam várias cidades, irremediavelmente separadas. Em meio à festa, tudo parece igual. Desfeita a  ilusão de Momo, a realidade se revela sem máscaras. Mas os assombros, felizmente, são poéticos e trazem à superfície o melhor do Recife. Como nessa história que narro. E que aconteceu ou sonhei.

 

Ninguém mais se refere à porta sul do Recife, antiga entrada da cidade para quem vinha do continente. Lugares mudam os nomes, são esquecidos e apagados da história, sofrem demolições ou se transformam por conta de reformas, quase sempre equivocadas. A Casa de Badia, no Pátio do Terço, foi erguida num espaço onde se presenciou a resistência à presença holandesa, a execução de Frei Caneca, os movimentos abolicionistas e os avanços da Belle Époque, que tantos estragos causaram nas fachadas dos sobrados e na vida de nossa gente. Assimilou-se definitivamente a cultura ocidental, tornando irreconhecível o que no começo era apenas uma ilha estreita, “metade roubada ao mar, metade à imaginação”, brotada entre águas de rio e oceano, onde pescadores e navegantes se arranchavam.

Não desejo me deter em lembranças da cidade Maurícia, que num curto tempo de 24 anos se abriu ao comércio, ficou cosmopolita, falava idiomas da Europa e de outros lugares do mundo, ganhou prédios, pontes e saneamento, conheceu relativa liberdade de culto, recebeu judeus que fundaram a primeira sinagoga das Américas e viviam fora de guetos ou judiarias. Nem ressaltar o Recife inventado por Gilberto Freyre, Joaquim Cardoso e Ariano Suassuna. Meu interesse sempre foi pelo Recife caribenho, carnavalesco, dos cultos afros, um quilombo urbano sobrevivendo à desigualdade social, ao preconceito e à repressão.

Na casa de Maria de Lourdes da Silva eu vi a cena estranha.  À beira da morte Badia ainda costurava para clubes, blocos, troças e escolas de samba do carnaval recifense, recebia agremiações em sua casa, nos dias de festa. O Pátio do Terço concentrou a maior população negra da cidade, até a década de quarenta do século passado, tornando-se um polo que irradiava a cultura e a religião das nações africanas.

 

Vi mesmo ou apenas sonhei? Lembro de ter encostado o flabelo em forma de máscara, que ajudei a confeccionar, numa das paredes altas da casa, o telhado a perder de vista. Sentia-me exausto após percorrer ruas e becos à frente do bloco, carregando o abre alas. Na época, não conhecia a mulher que franqueava suas portas ao Bloco da Saudade, ofertando mesa de frutas tropicais, água, refrescos, mungunzá, cocadas e bolos. Tudo de que os brincantes precisavam para recompor as forças gastas no desfile pelos bairros do Recife, Santo Antônio e São José.

– Essa é Badia – me falaram, quando ela passou com uma bandeja.

– Ah! – exclamei.

Olhei curioso a mulher num vestido estampado, recebendo os desconhecidos com a nobreza de uma grande dama. A casa velha ameaçava ruir, soterrando seu bocado de história. Havíamos entrado pelos fundos, numa espécie de pátio coberto ou terreiro. Imaginei que ali dentro se celebravam os orixás e, um pouco mais adiante, na Igreja de Nossa Senhora do Terço, os santos do catolicismo.

– Posso percorrer a casa? – perguntei ao diretor do bloco.

– Acho melhor, não.

Se ele tivesse insistido para que eu entrasse, desvelando portas, cômodos e os mistérios que eu imaginava existirem lá dentro, em meio às relíquias de uma África salva do cativeiro, talvez eu me contivesse entre fatias de abacaxi e bananas, risadas bêbadas e acordes arrancados de bandolins e violões. Mas a proibição me aguçou os sentidos, me empurrou à procura de experiências novas.

– Essa era a casa das tias Sinhá e Yayá, aonde Badia chegou recém-nascida, em 1915, trazida pelas duas pretas.

Cochichou em meu ouvido o diretor, que arranjara a recepção a troco de nada.

– Sei – disse balançando a cabeça em sinal afirmativo, com vergonha de confessar minha ignorância sobre a história da cidade.

Pedi licença para me servir, rodeei a mesa e, sorrateiro, invadi o espaço sagrado.

Havia um corredor comprido, com estandartes e retratos emoldurados nas paredes, cadeiras capengas, portas e janelas semicerradas, interditando os olhares curiosos. Empurrei a janela de um quarto e descobri dois meninos, um branco e um negro, deitados. Aparentavam nove meses. Gordos e risonhos, se debatiam na cama, em meio aos lençóis. Achei que fossem gêmeos, apesar das cores diferentes de suas peles. Fiquei um tempo contemplando a aparição. Quem havia largado dois bebês desprotegidos, ao léu da velha casa? Pareciam tão brincalhões e travessos. Tinham provocado um susto no folião bisbilhoteiro. Botei para rir e saí de mansinho. Não havia álcool em minha pneuma, nada que me condenasse num teste de bafômetro.

Emburaquei casa adentro. Filtrados pelas paredes grossas, sons de marcha anunciavam que o bloco estava de partida. Pensei em retornar ao pátio, mas fora contaminado pelo desejo de vasculhar estranhezas. Mais estandartes e retratos antigos, precariamente iluminados por lâmpadas incandescentes, de poucos watts. Escutei vozes sussurradas e risinhos. Caminhei na direção de uma saleta e vi três mulheres em volta de uma mesinha redonda e de uma garrafa de cachaça. Bebiam em pequenos copos. Negras e velhas, vestiam blusas e saias longas, semelhando os trajes das mães de santo.

Olharam para mim sem surpresa.

– Quer? – me ofereceram a bebida.

– Obrigado, mas não bebo cachaça.

As três riram do meu acanhamento. Uma delas comentou:

– Não sabe o que perde.

Perco nuances de um Recife de belezas e armadilhas. Ao invés de abrir-me ao vento das marés e dos morros, fecho-me em silêncios contemplativos.

– Quem são os dois meninos na cama? – perguntei.

– Ah! Os meninos.

– O senhor viu?

– Vi.

Elas gargalharam alto e entornaram a bebida goela abaixo.

– Se o senhor viu é porque nem tudo está perdido.

E beberam mais cachaça, muitas talagadas, rindo descaradas do meu rosto surpreso, sem alcance para a felicidade que elas sentiam.

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