Quero ir ao hospital trabalhar | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Quero ir ao hospital trabalhar

Estava em Recife na grande cheia de 1977. Era médico residente do Hospital Getúlio Vargas, mas fiquei ilhado, em casa. No segundo dia de cheia, alarmado com as notícias sobre hospitais abarrotados de pacientes, médicos exaustos dobrando plantões, decidi seguir ao trabalho a qualquer custo. Liguei para o corpo de bombeiros, me identifiquei e solicitei uma condução. Coloquei mudas de roupa numa bolsa, toalhas e objetos de toalete. O caminhão chegou, entrei na cabine alta e partimos. Minha rua era a única cercada por água. À medida que seguíamos, eu me decepcionava com as praças e avenidas apenas com lama remanescente da cheia. Nada do que mostrara os noticiários da televisão. Para humilhar, o bombeiro ligou a sirene e pôs-se a rir de minha quixotice. Fui recebido com vivas e palmas pelos colegas. O plantão estava calmo, todos haviam sido rendidos na hora certa. A calamidade só viria depois, com a epidemia de hepatite e leptospirose, quando pude dedicar-me em tempo integral aos pacientes.

Costumo admirar os heróis. Segundo Joseph Campbell, o herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo. E se pergunta como pode um ser humano participar tão intensamente do perigo e da dor que aflige o outro a ponto de, sem pensar, espontaneamente, chegar a sacrificar a própria vida. E lembra que Schopenhauer escreveu que essa é a abertura para a consciência metafísica de que você e o outro são um, de que você é dois aspectos de uma só vida. 

Será que pautei minha vida assim? Acho que não tanto, mas não afirmaria o mesmo que Fernando Pessoa no seu Poema em linha reta: Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco. Tenho levado boas porradas. O herói, ainda segundo Campbell, é a antítese do governante doentio, narcísico e sequioso de poder que nos empurra ao precipício. É aquele que participa corajosa e decentemente da vida, no rumo da natureza e não em função do rancor, da frustração e da vingança pessoais.    

Ortega y Gasset, nas suas Meditações sobre Dom Quixote, afirma que ele saiu pelo mundo à procura de gigantes mas, em vez de gigantes, o ambiente à sua volta lhe ofereceu moinhos de vento. A história se passa numa época em que havia uma interpretação mecanicista do mundo, de modo que o meio não fornecia mais respostas espirituais ao herói. Nosso tempo é bem mais materialista e cartesiano do que a Idade Média, e o protótipo de herói tornou-se o da pessoa sem escrúpulos e sem caráter, o anti-herói, o “mito”.

Quando me sinto acovardado, penso nos homens que venceram o medo e a covardia e, obsessivamente, procuraram servir ao outro. Um deles é o escritor russo e médico Anton Tchekhov. O trato com a literatura lhe pareceu precisar de uma complementação, o que ele alcançava com a medicina. A literatura, segundo Tchekhov, era sua amante, enquanto a medicina, a esposa legítima. Apesar da saúde combalida – contraiu tuberculose aos 26 anos e morreu com apenas 44 anos –, ele fez uma viagem para a ilha de Sacalina, a grande ilha prisão localizada no extremo oriente do território russo, quando tinha 30 anos. O local inóspito, a 9.000 km de Moscou, era utilizado pelo regime colonial czarista para aprisionar degredados. A viagem durou três meses na ida e dois meses no retorno, num total de dois anos, que muito custou à saúde frágil do viajante.

O escritor médico estudou e escreveu um relatório sobre as horríveis condições de vida dos prisioneiros banidos, a miséria e degradação a que eram submetidos. Tchekhov necessitava desse trabalho humano, mensurável e alcançado apenas com a prática médica. Em relação à literatura tinha sempre a consciência pesada e se perguntava: Será que estou ludibriando o leitor, já que não sou capaz de responder as questões mais importantes.

Sobre a obsessão de Tchekhov pelo trabalho e seu zelo com as pessoas, Thomas Mann escreveu: Devemos admitir que o ser humano é um ser desencontrado. Sua consciência, que é da parte do intelecto, jamais poderá ser harmonizada com a sua natureza, sua realidade, sua condição social, e sempre haverá ‘insônias honrosas’ entre aqueles que, por alguma razão obscura, se sentirem responsáveis pela sorte e pela vida humana. Se houve alguém que sofreu dessa insônia foi o artista Tchekhov, e toda a sua atividade poética foi ‘insônia honrosa’, a busca pela palavra correta, salvadora, à pergunta: ‘O que devemos fazer?’. Essa palavra dificilmente podia ser encontrada, se é que podia ser encontrada. Só uma coisa ele sabia com certeza: que o ócio é a pior coisa, que é preciso trabalhar, porque o ócio significa mandar trabalhar, explorar e oprimir.

A lembrança de Tchekhov me ocorreu por conta da pandemia do coronavírus. Há cinquenta anos entrei no exercício da medicina, contando os anos de formação, a maior parte deles dentro de hospitais. Trabalhei com doentes graves em emergências, clínicas psiquiátricas e de traumatologia, dispensário de tuberculose, isolamento de cólera. Criei várias campanhas de educação em saúde e viajei por Pernambuco e outros estados do Nordeste, a serviço dessas campanhas. É com estranhamento que fico dentro de casa, ocupado noutros afazeres, porém sentindo-me ocioso porque não estou no corpo a corpo com os pacientes. Fui obrigado a recolher-me porque estou na idade de me contaminar e contaminar os outros. Mas tem sido difícil aceitar o isolamento forçado. Sou acometido de ansiedade porque habituei-me a atender, examinar, medicar, cuidar. Estar fora dessa prática me deprime. Posso até não contrair a doença, mas sobreviverei sequelado e com um amargo sentimento de covardia.

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