Diário do isolamento 8 | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Diário do isolamento 8

(terça-feira, 14 de abril)

A difícil escolha

O rei indiano Pandu, segundo está narrado no Mahabharata, retirou-se com suas duas esposas, Kunti e Madri, para a floresta de Hastinapura, onde viveram felizes durante semanas. Um dia Pandu deixou as esposas e partiu sozinho para caçar. Avistou dois veados copulando e feriu-os com suas flechas. A corça tombou sem vida e o companheiro ficou mortalmente ferido. Quando Pandu se aproximou, o veado olhou para ele e, com lágrimas nos olhos, perguntou:

– Por que fez isso?

– Reis podem caçar veados – respondeu Pandu –, isso não é crime.

– Não o culpo por caçar – replicou o animal. – Mas, pela crueldade de nos matar enquanto nos amávamos, eu o amaldiçoo! Trouxe-me mágoa e dor quando eu estava feliz; tornou inútil o meu amor… inútil se tornará também o seu. A morte virá arrebatá-lo da próxima vez que você amar.

E então o veado morreu. O rei ficou estarrecido e contou às esposas o infortúnio de que fora causa. Pediu que elas regressassem à corte e o deixassem sozinho. Falou que nem alegria nem tristeza permaneceriam nele, nem o medo ousaria ficar em sua presença.

Madri chorou, e Kunti disse:

– Devemos partilhar da sua maldição e permanecer com você, pois, se nos mandar embora, logo morreremos com o coração partido.

Anos, estações e acontecimentos se passaram. Na primavera, Madri foi banhar-se sozinha no rio. Pandu seguiu-a furtivamente floresta adentro e a possuiu. E embora ela tentasse resistir, penetrou-a cheio de amor e expirou com um grito nos seus braços. Madri segurou o corpo de Pandu e chorou e lamentou que ele tivesse morrido sem satisfazer seu desejo, até que o coração dela se partiu e ela também morreu, indo para o céu consumar o ato de amor.

Vivemos numa espécie de panóptico, vigiados e sob controle. Apenas a rebeldia mantém alguns de nós vivos. Em outros, o medo e o receio de não saberem se são mesmo observados, leva-os a adotar o comportamento que o vigilante deseja. Nessa penitenciária ideal, o prazer foi postergado para talvez nunca mais, ou transformou-se em fantasia, imagem virtual, sonho. Desejar outro corpo, procurá-lo, possuí-lo mesmo num gozo fugaz, pode representar a morte como foi para o rei Pandu. Quem nos amaldiçoou? O que fizemos para merecer a maldição? A quem interessa nos manter reféns do medo? A que sistema, que terrível sistema capital?

Vale a pena quebrar o vidro do panóptico, numa ousada rebeldia contra o medo? Mesmo que ao final agonizemos e apenas no céu possamos consumar nosso ato de amor?

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