26 abr Diário do isolamento 13 – A loja dos horrores
(domingo, 26 de abril)
A loja dos horrores
“Se for mesmo imperioso, terei de lavar as mãos quarenta vezes com potassa, outras quarenta com raiz aromática, e mais quarenta com sabão, totalizando cento e vinte vezes.”
Ainda não cheguei a tanto, mas se algum dia sairmos do isolamento – possibilidade cada vez mais remota –, teremos elevado o nosso insignificante transtorno obsessivo compulsivo à categoria de neurose grave. Se cuidem, a higiene excessiva é uma fábrica de loucos: apertar o botão do elevador com o cotovelo; lavar as mãos antes de tirar a máscara e, depois, repetir a lavagem; abrir portas com os pés; passar álcool gel no saquinho de batata fritas; não levar as mãos ao rosto; manter distância suficiente das pessoas; não permitir que o corpo roce em paredes; não fazer isso, nem aquilo, nem etc. Em suma, um manicômio.
A recomendação no primeiro parágrafo não foi sugerida por mim, está no Livro das mil e uma noites, ramo sírio, traduzido por Mamede Mustafa Jarouche. Se trata do infeliz casamento de um mercador de Bagdá com a favorita de Madame Zubayda, esposa do califa Harun al-Rashid. Depois de peripécias só descritas nos contos árabes, o jovem mercador, que tivera a sorte ou o azar de conhecer e se apaixonar pela criada de Zubayda, finalmente se casa com ela. Na noite de núpcias, come um ensopado de carne com tempero de cominho, pimenta e vários ingredientes fortes.
Maravilhado com a beleza da jovem esposa, o rapaz esquece de lavar as mãos e vai ao leito nupcial. A moça se ofende com o desleixo, reclama do odor insuportável, ordena que suas servidoras segurem o marido e o espanca sem piedade. Como se isso não bastasse, ela mesma amputa com uma faca os polegares das mãos e dos pés do aturdido rapaz. Antes, informa-o de que ele deveria ter lavado as mãos cento e vinte vezes, conforme a receita acima. O infeliz desmaia com as dores. A diligente esposa estanca o sangramento e durante um mês faz curativos, até que as feridas sarem. Com o dote recebido do califa, o casal compra um belíssimo palácio, onde vivem anos de felicidade e ventura, até que a morte os separe.
Nesse tempo pandêmico, nunca recorri à fórmula árabe higiênica. Limitei-me à água e sabão, que parece funcionar bem. Quanto à amputação dos polegares, venho sofrendo quase todos os dias. O país atravessa a maior crise da sua história: política, sanitária e econômica. Em meio à dor e ao choro, à fome e à miséria, impossibilitados de frequentar os teatros e assistir bons espetáculos, vemos pantomimas de terceira, com atores ruins, transmitidas em cadeia nacional.
Nos dramalhões da última sexta-feira, os protagonistas da cena televisiva lembravam as pinturas assustadoras de Bruegel. Provocavam riso, nojo e medo, como no filme A pequena loja dos horrores, em que o personagem Seymor alimenta uma planta carnívora com pedaços de carne humana. Meus quatro polegares já se foram e pedaços do fígado, coração e cérebro de muitos brasileiros. Mas os personagens que exercem o poder na triste cena nacional são insaciáveis, e não cansam de beber o nosso sangue e sugar a medula dos nossos ossos. Até quando? Até quando deixarmos.
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