14 maio Homem atravessando pontes
Caminha sempre aos domingos, com a devoção de um católico que frequenta a missa. Religiosamente. Bermuda jeans, camisa de malha meio gasta, sandálias de couro no lugar dos tênis e o boné ganho numa loja de construção. Anda dez quilômetros se a bebedeira do sábado não deixou ressaca.
Às cinco da manhã senta na frente do computador; dá os últimos retoques numa conferência ou na pesquisa para não sei qual ministério. Atividades que o mantêm ocupado e à beira do estresse, viajando pelo Brasil, pelo mundo, por universidades e embaixadas. Hospeda-se em hotéis de luxo; recebe diárias e cachês altos. Talvez ganhe bastante dinheiro, nunca se tem certeza. Ele mesmo cria uma atmosfera de mistério em torno desses afazeres alheios às caminhadas e aos encontros com os amigos. Dorme cedo e acorda cedo. Qualquer mudança nesse fuso horário provoca transtornos no humor depressivo.
Trabalha até às 7h50min, sem quebrar o jejum nem mesmo com uma fatia de pão dormido. Às 8 horas desce pelo elevador de serviço e inicia o périplo por lugares do centro do Recife. Um percurso sempre tão igual que as calçadas de pedra portuguesa guardariam os rastros do andarilho, se não tivessem sido trocadas por blocos de concreto, na nova administração da prefeitura. Substituíram as pedrinhas brancas e pretas com o mesmo cinismo com que derrubam prédios antigos, monumentos e igrejas. Mas o nosso homem de bermuda jeans e camisa de malha meio gasta caminha olhando para frente. Nunca se detém nas fachadas das casas nem nos pardieiros arruinados. Não investiga restos de arquitetura colonial e art nouveau, não repara nos avanços modernistas da art déco, nem perde tempo com os excessos barrocos. Apenas caminha, exercitando as pernas e a musculatura cardíaca.
A pasta de couro usada nas viagens longas foi adquirida numa loja de departamentos em Londres e os paletós foram comprados em Milão. O avesso do figurino pobre de andarilho recifense. Não vestiria os mesmos trapos no Caminho de Santiago de Compostela. Com certeza, não. Talvez ele deseje confundir-se com pessoas comuns, perambulando por ruas desertas da cidade, nas manhãs de domingo. Recife mal despertado, as crianças em cima de papelões nas calçadas, grogues pelo excesso de cola e crack, dormindo alheias ao sol quente no rosto, aos sinos da Igreja de Santo Antônio e ao caminhante que nem olha para elas.
O homem de aparência disfarçadamente modesta talvez pense na sociologia acadêmica, no pós-doutorado em Harvard, no orgulho de ser o provedor da família. Acelera o passo com a certeza de que não ultrapassará os oitenta batimentos cardíacos por minuto, o ritmo ideal segundo o cardiologista que o examinou. Deixa a poesia das ruas para Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo e Carlos Pena Filho. Felizmente não se chama Severino, como no poema de João Cabral, e nunca pensou em atirar-se da ponte para fora da vida. Seu último teste ergométrico foi perfeito.
Vence os primeiros obstáculos da Boa Vista, atravessa a Ponte Duarte Coelho, a Guararapes, a Pracinha do Diário e pega à direita na Rua do Imperador. Chega ao Mercado de São José, cruza o Pátio de São Pedro e o largo da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, com seu esplendoroso altar barroco pagão. Nem uma única vez ele para e contempla as igrejas abertas, relíquias de um passado colonial que o envergonha. Na França, visitou a Notre Dame de Paris e a catedral de Chartres. Mas a França é a França e Pernambuco é Pernambuco.
Apenas agora se liga nos primeiros sinais de fome, um aumento do peristaltismo abdominal. Não come há mais de doze horas. Habituou-se ao jejum prolongado. Às dez, sentará com amigos no Mercado Popular da Boa Vista para uma rodada de chope e um arrumadinho de charque. Prefere rum com coca-cola, pois cerveja dilata a bexiga. Sente dores no púbis desde quando a esposa dedicou-se à ioga tantra, exigindo-lhe que mantenha por mais tempo a ereção do pênis e alcance o orgasmo sem ejacular. Um esforço excessivo na sua idade. Aceita o sacrifício estoicamente, temendo que ela o imagine sem a mesma potência do início do casamento. Garante aos amigos manter a ereção durante seis horas. Nenhum acredita.
Cruza a Ponte Velha sobre o rio Capibaribe de águas podres, onde jura que se atira no dia em que ficar impotente. O suicídio premeditado nada tem a ver com a poesia de João Cabral, nem com Seu José mestre carpina do poema em louvor à vida, mesmo a vida mais insignificante, uma vida severina. Nada do discurso sociológico que sempre lhe garantiu bons empregos e salários. Um suicídio por questões meramente sexuais, talvez antropológicas. Jura aos amigos matar-se. Eles riem entre uma bebida e outra, nos encontros de domingo após as caminhadas, em lugares sórdidos onde servem comida deplorável e tocam música em radiola de ficha.
A ponte fende o rio em dois. Sente o mau cheiro da maré baixa e avista caranguejos à deriva. A mulher descobriu um novo roteiro para o sexo: o tantrismo. O que a sociologia do mangue e as palafitas da Ilha do Leite têm a ver com a cultura amorosa indiana, que o oprime e o deixa também à deriva? Desenvolveu um modo próprio de pensar e fazer o sexo. Sofreu para circuncidar-se sozinho, soltar o prepúcio da glande, romper o cabresto. Prefere as mulheres no papel de mulheres e ele no de homem. Quando os amigos pedem que explique melhor suas teorias, enrola-se em frases sem conteúdo e o levam no deboche.
Os caranguejos se enovelam na lama suja, uma visão aterradora. São os mesmos que os catadores limpam e vendem presos em embiras: dóceis, amansados. Saem da prisão dos barbantes para a panela de água quente. Bem simples e prático. Depois, são servidos à mesa com pirão de farinha de mandioca. Uma gastronomia irretocável, fruto da tradição, o regionalismo tradicionalista e a seu modo modernista das lições de sociologia e antropologia pernambucana. O andarilho sorri ao lembrar que os caranguejos fazem parte de uma cadeia alimentar e cultural, em cujo topo ele se agarra a um emprego para sobreviver. Cospe com nojo nos bichos atracados tentando escalar os paredões da ponte e invadir as ruas da cidade. Imagina o Recife tomado por caranguejos, numa guerra para que o mangue sobreviva. Os bichos amontoam-se como degraus de uma escada, ganham altura, oscilam e tombam de volta à lama e ao caos do rio. Lembram tarântulas sem veneno. Apertam com as tenazes das patas os intelectuais metidos a pesquisar a podridão do mangue, provocando susto, dor e gritos nos invasores, um mal passageiro e merecido, embora nem se compare à febre venenosa das tarântulas.
Bichos tântricos, trepam uns sobre os outros e, se deixarem, ali ficam para sempre. Ele não deveria consentir que a mulher frequentasse o curso de ioga tântrica, com um professor indiano. O que um indiano entende de caranguejos de patas arreganhadas, que nós quebramos com porretes de madeira e chupamos a carne e os miolos? Pergunta-se com raiva, conjugando o verbo quebrar na primeira pessoa do plural como político devasso ou professor acovardado: nós. É ele quem deseja quebrar. A cada mês a mulher passa um final de semana fora de casa, num hotel de campo, em meio ao que restou da Mata Atlântica. O mestre e os discípulos discorrem sobre sexo tântrico. Será que se exercitam em aulas práticas? Ele também viaja, passa dias fora de casa. Os homens foram nascidos para viagens, aventuras, perigos e guerras. É biológico. As mulheres esperam, tecendo mantos infindáveis. Sempre raciocinou dessa maneira, apesar da sociologia, da Califórnia, da contracultura e de todos os libelos feministas.
– Muitas coisas mudaram, mas, no campo da relação entre os sexos, continuam iguais.
A irlandesa Edna O’Brian também pensa como ele, o que o deixa bastante orgulhoso. É uma mulher inteligente, de olhos verdes e pele muito alva, sempre vestida de negro. O sexo ocupa os pensamentos da escritora como algo misterioso e agressivo, que ela transforma em literatura para não enlouquecer. O instinto e a paixão dos homens e mulheres são radicalmente diferentes, argumenta numa entrevista a Philip Roth. Na hora de se agarrarem, os homens possuem mais autoridade e autonomia. Gozam dentro das mulheres doando sêmen, o líquido vital cheirando à água sanitária. Elas recebem o tesouro viscoso, uns poucos mililitros repletos de espermatozoides, milhões de células inquietas de cabeça grande e cauda buliçosa. Retêm-no sem dar nada em troca, enquanto os homens tombam de lado, exaustos, precisando de um tempo para se refazer do esforço, alheios à viagem das parceiras. Fogem para um lugar só deles. Olham a parede contrária ao rosto que há poucos minutos beijavam com sofreguidão. As mulheres desconhecem por onde os homens passeiam, não compreendem quão instintiva é a partida, essa busca de encontrar-se a si próprio e reanimar-se. Sentem-se abandonadas e magoadas. Edna O’Brien experimenta um vazio igual e arranca seus escritos do nada. O andarilho acredita que as mulheres inventaram o sexo tântrico para vingar-se do abandono posterior ao orgasmo. Se os homens não ejacularem, ficarão em pé de igualdade com elas. Os machos nada doarão de si; talvez apenas um espermatozoide afoito. Anulam-se as leis biológicas, desfaz-se a relação de poder e mando. O amor sexual passa a desencadear-se pela consciência e não mais pela paixão.
O corpo treme quando contempla a escada de caranguejos, desabando na lama podre. Talvez desista do encontro com os amigos e apareça de surpresa no hotel onde a mulher se hospedou para o curso. Ela ficará assustada com a presença dele em meio aos colegas, temendo o que possa imaginar de ensinamentos tão estranhos ao meio acadêmico do curso de sociologia. No começo, ela até sugeriu ao marido se incorporar à turma de iogues. Parecia sincera. Mas foi apenas no começo.
Não irá pelo Cais José Mariano, mesmo sendo domingo. A lembrança dos armazéns de madeira, dos caminhões descarregados por homens fortes e suarentos, o enoja. Prefere a rua da Matriz da Boa Vista, onde se casou. O que a esposa conversa com o professor indiano? Até onde chegam as intimidades verbais? Em que termos falam de sexo, endurecimento, ejaculação, orgasmo? Já são quase dez horas e os moradores de rua continuam dentro de suas casas improvisadas com plásticos e papelões. Dá para ver alguns bebendo aguardente, de cócoras na calçada. Os gradis dos casarios, orgulho da memória ibérica pernambucana, servem para amarrar os plásticos com que improvisam os abrigos, a cada noite. Apenas nos domingos as cobertas permanecem montadas pelo dia afora. Quando chega a segunda-feira, os moradores se dispersam e a cidade reassume a vida comercial. Melhor ignorar tudo isso, não fez sociologia pensando em sujar as mãos no sangue. As feridas são para os poetas e guerreiros. Prefere batalhas na cama, mas a esposa o obriga a uma contenção severa, enchendo sua musculatura de dores.
Será que o indiano segura seis horas de ereção sem ejacular uma única vez? A mulher garante que sim. Como ficou sabendo? Ele, o marido, sempre gostou de esporrar, de ver as arremetidas do jato de esperma. Orgulha-se da força propulsiva do membro, lançando a quase um metro de distância os jorros em ondas de gozo. E os moradores de rua, como fazem sexo? Amontoados na lama, igualzinho aos caranguejos? Pessoas caminham nas calçadas, carros buzinam nas ruas, vizinhos de mocambos de papelão se esfregam ao lado, sem afetá-los. Pernas, braços e cabeças invadem os espaços. Corpos amontoados se tocam, chafurdam entre molambos e restos de comida, em torno de garrafas vazias, pontas de cigarro, maconha, cola e crack. Imagina uma suruba coletiva debaixo dos papelões, como nos filmes pornôs ou na antiga Babilônia. Excita-se. Teme não resistir ao impulso de enfiar-se em algum daqueles tugúrios. Aperta o passo, confiante no teste ergométrico, porém o coração acelera a cento e dez batidas por minuto.
É necessário sentar e descansar.
Chegou à antiga Praça da Boa Vista, onde no passado havia um chafariz. Seria bom refrescar-se. Agora, a água brota de uma fonte resguardada por ninfas e leões. No alto, a escultura de uma índia remete aos antigos moradores de arrecifes e manguezais, dizimados como os caranguejos. Outros crustáceos se movimentam em torno da praça gradeada. Melhor nem mencioná-los.
O andarilho cansou dos próprios pensamentos e das imagens sem pudor. Não costuma deter o olhar em quase nada, mas se embevece com as ninfas de perfil clássico, os peitos à mostra. Envergonha-se das fantasias com mulheres que o abordam pedindo cigarro e dinheiro, mas é seu modo pueril de vingar-se da esposa ausente.
Na casa de número 387, um pouco à frente, viveu na infância a escritora Clarice Lispector. Lembra o nome de um livro escrito por ela: A imitação da Rosa. Leu apenas o conto que dá nome à coletânea: a angustiante loucura de uma mulher, obcecada pelo desejo de alcançar no casamento a perfeição das rosas. Pensa na esposa e sente uma fisgada no peito esquerdo. Ela também busca a harmonia na vida conjugal, a perfeita comunhão entre corpo e alma. Ele não compreende essas coisas e provavelmente está enlouquecendo.
Construíram a fonte de pedra em Lisboa, do outro lado do Atlântico. Várias praças se sucederam ao longo do tempo, até esta por onde ele caminha inquieto. É possível investigar o passado de todas elas, seguir as pegadas de Clarice e famílias judias dando voltas ao redor, tentando esquecer os horrores da guerra.
O coração permanece acelerado, ameaçando explodir. E se pular na água? Talvez refresque a cabeça. Talvez.
Ronaldo Correia de Brito
Conto do livro Retratos imorais (ed. Alfaguara)
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