02 jun Diário do isolamento 19
Diário do isolamento 19
(terça-feira, 02 de junho)
Respondo perguntas
Durante a quarentena, me ocupo com diversos afazeres, além dos exaustivos trabalhos domésticos. Respondo uma entrevista sobre a atual literatura brasileira, aos professores André Tessaro Pelinser, Letícia Malloy e Vitor Cei.
De acordo com a biografia publicada em seu site, seu percurso literário teve início em 1970, com a leitura de um esboço do conto “Lua Cambará” a um grupo de amigos. Nas décadas seguintes, você transitou por outras linguagens artísticas, como o cinema, o teatro e a música, antes de publicar seu primeiro livro de contos, em 1987. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor?
Resposta:
Vocês propõem que eu fale do meu processo de escrita, coisa de que não se falava muito, no passado. Agora, as pessoas publicam um livro e dão conferências sobre técnica literária e até ministram oficinas de escrita criativa. Lembro o ensaio de Deleuse “A literatura e a vida”: Acontece de felicitarem um escritor, mas ele sabe que está longe de ter atingido o limite que se propõe… Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor.”
Eu tinha experimentado o teatro, quando era adolescente e ainda morava no Crato, Ceará. Escrevia monólogos, diálogos e crônicas para as festas do colégio. Adaptei Vidas secas, de Graciliano Ramos, à cena, em parceria com o colega Assis Lima. Foi um desastre.
Considero o exercício de escrever cartas, redações e discursos por encomenda o meu início. Sobretudo as cartas, pois eu precisava ouvir longos relatos de vida e depois passá-los ao papel. Substituí minha mãe, uma professora primária, nesse ofício. Ela era bondosa, ajudava as pessoas humildes e analfabetas escrevendo folhas e folhas de papel aos parentes distantes, maridos, noivos, filhos, pais ou irmãos. Gastava-se tempo nessa missão. Mamãe tornou-se cada dia mais ocupada e pediu que eu assumisse o lugar dela. As pessoas, quase sempre mulheres, sentavam em um lado da mesa, eu me sentava no outro, ouvia e anotava. Assim, aos dez anos, aprendi que se deve ouvir as pessoas com atenção, olhá-las e, em seguida, dar forma ao que se ouviu.
Desse aprendizado, evoluí no gosto pela medicina, que consiste em ouvir, olhar e tocar o paciente, a antiga lição de Hipócrates, esquecida em tempos de alta tecnologia. Os pacientes tornaram-se meus narradores. Em enfermarias ou consultórios, não passava um dia sem escutar dramas, tragédias ou comédias, anotadas em prontuários e nas agendas de bolso.
Mas o conto “Lua Cambará”, que foi adaptado para o cinema, o teatro, a música e a dança, e me aproximou de Davi Arrigucci Jr, baseia-se numa lenda da região dos Inhamuns, onde nasci. Meu pai costumava contá-la para mim. Esta e muitas outras histórias.
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