09 jun Somos regionalistas?
Diário do Isolamento 19
(09 de junho de 2020)
Somos regionalistas?
Por achar pertinente ao temas que venho tratando em minha página, publico mais uma resposta à entrevista concedida aos professores André Tessaro Pelinser, Letícia Malloy e Vitor Cei no âmbito do projeto Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas.
Algumas de suas obras recuperam um dos símbolos mais duradouros e potentes da literatura brasileira, o sertão, em torno do qual gravitam temas, imagens e personagens fundamentais para a série literária nacional, comumente associados à tradição regionalista. Tanto em Galileia (Alfaguara, 2008) quanto em Dora sem véu (Alfaguara, 2018), por exemplo, temos personagens que se veem forçados a retornar ao sertão por motivos alheios a sua vontade, e lá se deparam com um espaço transformado, contraditório e desigual. Como você avalia possíveis associações entre sua escrita e a tradição regionalista, que nem sempre é bem vista pela crítica literária brasileira?
Resposta.
Rubens Figueiredo e eu participávamos de uma mesa sobre literatura brasileira, quando me fizeram a tradicional pergunta, essa que se tornou curricular para mim: Você se considera um escritor regionalista? Rubens pediu o microfone e afirmou ser um regionalista, jamais um universalista. Ele traduz e estuda a literatura russa, sabe que apesar da divisão entre eslavófilos e europeizados, os escritores criavam para leitores da Rússia, pensando neles. Refletiam sobre o povo russo e chegavam às grandes questões do homem, sem veleidades universalistas. Convencidos como Tchekhov de que o mais importante é transformar a vida.
No Brasil, desde o começo do século passado, havia um desejo de escrever semelhante a europeus e norte-americanos modernos. Gilberto Freyre e vários intelectuais criaram um movimento em oposição à Semana de Arte Moderna de 22, o Movimento Regionalista-modernista, de 1926. Da valorização da cultura regional, surgiu o romance de 30, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Érico Veríssimo, para citar apenas alguns.
Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do país com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenando por “ignorância ou safadeza” muita coisa que merecia ser salva. Com desconcertante franqueza respondeu quando lhe perguntaram se era modernista: “Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”. Se o regionalismo ideado por Gilberto Freyre em reação aos modernistas ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que já existia desde as capitanias hereditárias, agravou a tendência em separar a produção intelectual do Nordeste e Sudeste.
Desculpem essa digressão didática, mas necessito dela para responder a pergunta que me fazem. Considerem que existiram cânones do regionalismo e do romance de 30. Passados noventa anos, não se escreve mais com essa linguagem, a menos que seja um caso de anacronismo. Mas se vocês consideram ter nascido, morar e viver numa região e vivenciar a cultural local como regionalismo, eu me assumo regionalista. Na Feira de Frankfurt, em 2013, onde eu era o único escritor residente no Nordeste, na comitiva do Brasil, fiquei orgulhoso em estar ao lado de Guimarães Rosa, apresentados como escritores regionalistas.
A questão é mais séria do que imaginam. O empenho de intelectuais e acadêmicos de diversas áreas – sociólogos, antropólogos, críticos literários – em folclorizar e subestimar o valor da produção cultural das regiões brasileiras, fora do eixo Sudeste, que detém o poder econômico e da informação, é bastante desleal e antigo. Cabe na análise das causas uma leitura política, por serem indissociáveis. Do Rio de Janeiro vieram os comandos que reprimiram a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, movimentos republicanos emancipatórios do Nordeste. Também do Sudeste chegaram as forças militares que esmagaram Canudos e o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidades que sonhavam com um novo modelo de sociedade. Somos mestiços de negros, índios, portugueses, judeus, sírios, libaneses, árabes, ciganos, holandeses e de muitos outros povos, falamos o mesmo idioma brasileiro, mas temos padrões culturais diferentes. Somos miscigenados, defendia Gilberto Freyre, contrariando o que a ciência equivocada do século XIX e início do século XX condenou como degenerescência e levou muitas nações, inclusive o Brasil, ao delírio da eugenia.
Cometeram erros históricos ao nos interpretarem. Sendo carioca, não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra, Euclides contribuiu para codificar o que lhe pareceu sertão, guiando leitores e gerações futuras a buscarem o modelo estabelecido de semiárido habitado por bárbaros, sub-raça ameaçada de desaparecer. Este livro preconceituoso, separatista, cientificamente vencido tornou-se a cartilha em que universidades e gerações de leitores formaram um imaginário de sertão e do homem sertanejo. O processo é semelhante ao dos orientalistas em relação ao Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado por estar fora dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste brasileiro sofreu por se encontrar fora dos limites da sociedade do Sudeste e Sul. Foi igualmente “sertanisado” por acadêmicos e cientistas.
Edward Said refere os dois aspectos do Oriente que o distinguem do Ocidente, na geografia imaginativa europeia: A Europa é poderosa e articulada; a Ásia é derrotada e distante. A China ainda não havia se tornado o que é hoje, é bom lembrar. Vale o mesmo para Nordeste e Sudeste? Perdemos o poder econômico e cultural, deixamos de estabelecer regras, desde a chegada de D. João VI e sua corte ao Rio de Janeiro. Já no século XVIII tentava-se controlar as migrações de sertanejos do “norte” para os sertões “paulistas”. Vale informar que “paulista” não se referia aos nascidos no Estado de São Paulo, mas a uma legião de bandeirantes, criadores de gado, grileiros de terra e mineradores, que ocupavam terras em São Paulo, Goiás, Paraná e até territórios do Piauí.
Não cabe no espaço de uma entrevista todas as questões suscitadas por essa pergunta. Nem sequer desenvolvi o tema do preconceito e do racismo, visceralmente ligado à questão. Semelhante a Kafka eu também poderia ter assumido o não lugar, o não pertencimento, como muitos nordestinos fazem por sobrevivência. Mas isso seria impossível, em tudo o que escrevo afirmo minha geografia de nascimento, a origem, onde vivi no passado e onde escolhi morar no presente.
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