18 ago Visão da Praça de Maio
Quantas vezes rodeei essa Praça, onde mulheres giram num círculo infinito, como se esmagassem uvas num lagar? Em vez de produzirem vinho, seus pés chafurdam sangue. São as mães da Praça, Marias de Maio na Praça das Mães.
Não me importo de ficar um dia suspenso pelo braço de uma grua, pintando de branco a Pirâmide de Maio, desde que eu possa contemplar o céu azul limpo, sem uma única mancha vermelha, nada que recorde batalhas em que muitos pereceram.
(Onde fica o sul? Por favor, o sul. Nesse lugar, velaram um morto cujo nome já nem lembro. Os livros de autores argentinos pairam sobre minha cabeça como nuvens carregadas de chuva).
Quanto mais alto sobe o jovem pintor em sua grua – com um balde de tinta branca e um pincel de cerdas grossas –, compenetrado em camuflar manchas na Pirâmide e gemidos de mães, quanto mais ele sobe, mais longe enxerga os modernos edifícios da cidade, erguidos sobre os pampas.
(A lembrança reclama novamente: apontem-me o sul, o charco escuro e o homem acossado por milicos).
Restarão planuras em Buenos Aires, o limite perdido? Por que me fecharam nos cubículos estreitos de uma casa de câmbio? – grades, grades, grades –, submarino onde esperei humilhado que me trocassem dólares, inseguro, as mãos trêmulas, sem acordo em acertar a escrita do próprio nome.
Mulheres brasileiras desfilam seus corpos perfeitos sob os flashes que as desnudam. Rapazes brancos se cumprimentam com beijos. Um homem negro escova a pele com as unhas, despido como um místico jainista, coberto apenas de céu e suor.
Indiferente ao movimento na Praça, o operário no cubículo da grua se esmera em pintar o monumento. Talvez não se pergunte nada, nem por que, nem para quê. Pinta, simplesmente. Trabalha. Da mesma maneira plantaram dezessete cruzes nos jardins em volta, tumbas de soldados que morreram defendendo o litoral.
Patagônia, 1982. Leio numa placa acintosa. Os turistas e o jovem pintor talvez não desejem ler.
Tanta beleza na Praça, tamanha grandeza esmagadora. Plantadas ao meio, as dezessete tumbas. O que elas significam para as duas mulheres brasileiras de curvas perfeitas? E para o rapaz ganhando o salário de pintor?
A Praça e o belo.
Os tapumes parecendo instalações de uma pinacoteca, nem ofuscam seu esplendor rosado.
(Pois que é o Belo
senão o grau Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos?)*1
Bem mais longe, a estátua de Cristóvão Colombo ouve os sinos da Catedral Metropolitana e pensa nos esforços da navegação. Gira a roda de turistas brasileiros, esperando as três horas da tarde. O sol é bom, o ar perfeito.
No Café Tortoni, homens aposentados jogam. Num canto de parede, o retrato de Federico Garcia Lorca resiste aos ideais políticos e ao fuzilamento que o matou. Torcem o nariz à sua poesia cigana. Comovem-se ao lembrar a morte inútil.
Servem almoço. De um filé mignon escorre sangue vivo. Por segundos, todos esquecem o peso da Praça de Maio e a leveza que a mantém suspensa.
Concentram-se apenas na carne sobre o prato.
*1 Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno
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