02 set Sobre livros e traças
Hegel afirma que o desejo do homem é o desejo do outro. Isso dá pano para as mangas de psicanalistas lacanianos. Levando a sério o lacanês, meu amor pelos livros é o amor do meu pai.
Com ele aprendi a ler, de forma bem cruel, destruindo figuras da História Sagrada. À luz de um candeeiro, no perdido sertão dos Inhamuns, Ceará, ocupava-me folheando o livro ilustrado com gravuras, enquanto meu pai costurava roupas de couro. A cada imagem do martírio de Cristo, eu apontava um possível vilão e meu pai confirmava: esse é ruim, pode matar. Pronunciado o veredicto, eu molhava o dedo com cuspe e esfregava a figura em papel, até destruí-la completamente. Acho que me antecipei aos métodos modernos de alfabetização.
Meu pai lia noites inteiras, na precária luz de um candeeiro a querosene, sentado junto à rede onde eu dormia. Nossa história predileta era a de José do Egito, do “Gênesis”. Um dia, papai me pediu que eu a lesse sozinho, em voz alta, para a família ouvir. Ao término da leitura, ele me olhou comovido e falou que eu não precisava mais dele para chegar aos livros.
Sempre fantasiei o meu pai com um escrínio de couro, feito por ele mesmo, onde guardava seu livro predileto: A História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Deslizamento psicanalítico. Saí de uma história para outra. Quem tinha um escrínio de ouro era Alexandre da Macedônia, onde guardava a Ilíada, de Homero, nunca se separando dele. Alexandre era um guerreiro, conquistador e estrategista, mas também amava os livros, os filósofos e os poetas. Apreciava tanto a poesia de Píndaro – poeta que alertava os homens para o perigo da guerra, tentando convencê-los à paz – que manteve de pé a casa do poeta, quando ordenou a destruição de Tebas.
Ora amado, ora odiado, o livro traça a trajetória do homem. Graças a ele conhecemos o herói Gilgamesh, da cidade de Uruk, na Suméria. Em escrita cuneiforme, o poema registrado em blocos de argila traz o primeiro relato do dilúvio. Cobiçado na Idade Média pelos monges beneditinos, representava o poder do conhecimento, que devia ser ocultado do vulgo, pois o saber é explosivo, único meio de libertação da tirania política e religiosa.
Francisco de Assis temia o livro como ao próprio Diabo. Receava que o conhecimento corrompesse o espírito e tornasse a mente complexa, ao contrário da simplicidade que ele pregava. Muçulmanos também odiaram as mentiras dos livros – O Corão é a única verdade.
O romance O nome da rosa, de Umberto Eco, possui a trama elaborada em torno de uma biblioteca e da luta pelo saber. O Panchatranta, coleção de setenta contos, compilada por volta do século VI aC, atribuída a Bidpai, um lendário sábio brâmane, é encontrado por Jean de La Fontaine, na década de 1660, e torna-se uma das fontes de inspiração das suas fábulas. Boccacio descobre O Asno de Ouro, de Apuleio, romance metafísico do século II, e graças a ele tomamos conhecimento da fábula helênica de “Eros e Psique”. Não menos fabulosa é a história de que Lao Tsé recolheu-se à floresta, dos 40 aos 80 anos, e que um dia atravessou um posto florestal e, sem maiores recomendações, entregou a um guarda os originais do Tao Te King, gesto de acordo com o taoísmo que ele pregava.
Para Borges, o fato central de sua vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia. Penso os livros como uma fragmentária rede de conhecimento, que reelaboramos em novos livros. Durante a adolescência, li na biblioteca de um primo livros parcialmente comidos pelas traças. Faltavam páginas inteiras, inícios, finais, meios. Nunca soube como terminava Eugênia Grandet, de Balzac, nem como principiava As minas de prata, de José de Alencar. Ficava a meu critério inventar os pedaços que compunham essa falta.
Novamente a psicanálise. O que colocar no lugar da falta? Outra escrita.
Mas qual é o lugar do livro na sociedade contemporânea? Todos fazemos a pergunta, diante do crescente poder da imagem. Espero que as pessoas sintam saudade de ler um bom livro. Ou de escrevê-lo, de maneira convencional, juntando palavras em frases.
Também pode ser uma escrita fragmentária, como a própria história do homem, em que é necessário recompor pedaços, num delicado trabalho arqueológico. A escrita de livros não é diferente da inscrição do homem na história. Partimos sempre do que já foi realizado por outros, antes de nós. Preenchemos os buracos vazios deixados pelas traças.
Amaro Agostinho dos Santos Junior
Posted at 21:18h, 05 setembroA leitura faz maravilhas! Nos liberta, redime, encanta, ensina, nos conduz pela vida, nos alimenta com seus frutos.