Maria Caboré | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
1493
post-template-default,single,single-post,postid-1493,single-format-standard,bridge-core-3.1.3,qi-blocks-1.3.3,qodef-gutenberg--no-touch,qodef-qi--no-touch,qi-addons-for-elementor-1.8.1,qode-page-transition-enabled,ajax_fade,page_not_loaded,,qode-title-hidden,qode_grid_1300,hide_top_bar_on_mobile_header,qode-content-sidebar-responsive,qode-theme-ver-30.2,qode-theme-bridge,disabled_footer_top,disabled_footer_bottom,qode_header_in_grid,wpb-js-composer js-comp-ver-7.9,vc_responsive,elementor-default,elementor-kit-2068

Maria Caboré

O começo

Maria Caboré vivia de pilar arroz, a um vintém cada cinco litros, e de outros trabalhos que a vida a obrigara a aprender. Carregava água para encher os potes das casas, lavava roupa, fazia mudanças, cozinhava. Desde menina conhecera a dureza de uma lida sem descanso.

Não tinha casa e não se lembrava de ter possuído. Um dia almoçava aqui, outro dia jantava acolá. Pagava com o seu trabalho, feito com disposição. A cidade precisava dela e usava os seus préstimos. Era Maria pra cá, Maria pra lá, Mariinha, nega, faz isto, vai acolá, bota na cabeça e entrega lá. E Maria fazendo. Pagavam com um vintém, quando pagavam. A avó fora escrava, e também rainha, num reino ensolarado da África. A cor da pele não deixava esquecer. Nem os sonhos em que aparecia uma terra distante e quente, um povo igual a ela, uma travessia de mar.

Vagava pelas ruas, entrava nas casas. Banhava-se no rio, nuinha, as coxas à mostra, a carne macia salpicada de gotinhas d’água. Despertava desejo quando passava com o rosto longe, imaginando besteiras. Os homens sentiam arrepios e esquentavam o sangue. Na pensão de seu Antônio Meneses, onde pilava arroz, os dois filhos dele viviam tentando agarrá-la. Se passavam perto de Maria, beliscavam suas pernas. Se a moça subia no pé de cajarana, eles subiam atrás e a perseguiam de galho em galho até conseguirem amassar os seus peitos. Maria não queria daquele jeito, nem com aqueles rapazes arrogantes. Sonhava com rostos negros como o seu, vindos de longe.

Um homem rico ofereceu-lhe brincos de ouro para ficar sozinho com ela. Maria não aceitou. Os dois filhos de seu Antônio Meneses a emboscaram num poço, onde apanhava água. Conseguiu fugir, mas ficou com o vestido rasgado, feridas no corpo e uma dor no coração. Às vezes, incomodava ser negra. Parecia que a vida era só trabalhar para os outros, e deitar com qualquer branco faminto de sexo. Passou a fugir dos homens que a agarravam contra sua vontade, escondidos para que as mulheres de família não vissem. As pessoas valiam o prato de comida que lhe davam para matar a fome, o tostão com que lhe pagavam o trabalho, e mais nada.

– Maria, vou me mudar pra uma casa nova. Quero que você me ajude. Chegue lá em casa, antes do meio-dia.

– Deixa de sonhar, Maria! Aquele homem não pensa em casamento. Ele só quer uma empregada.

– Te espero às sete horas, no curral de seu Azarias. Vai que é gostoso! Mas não vá não, sua negra!

– Ninguém entra na casa de Deus vestido assim! Cria compostura, mulher!

– Ô Maria boazinha! Ficou o dia tomando conta dos meninos, enquanto eu ia pra roça. Deus te abençoe!

Seu povo estava perdido, só aparecendo em sonho. Escutava tambores, gritos que não decifrava. Tinha visões de paisagens estranhas.

Por não querer os homens que a tentavam, por sonhar com rostos escuros, de uma terra de muito sol, começaram a espalhar que se casaria com Príncipe Odilon e Rei-de-Congo, vindos da África, com cortejo de guerra. Gritavam pelas ruas, onde ela passasse. Nas casas, nos becos, nas igrejas, nas bodegas, falava-se do casamento com as celebridades. O povo atiçava a fogueira da loucura de Maria, dando-lhe mais asas para sonhar. Risos e gargalhadas, vestidos mal costurados, molambos, cuias, coités, cestos de palha, panelas de barro, os cabelos desgrenhados e o batom fora dos lábios eram o seu enxoval do casamento. As majestades vinham de longe e queriam recepção: flores de papel crepom e areia prateada, luz de muitos candeeiros, vinhos de milho e abacaxi, banda de pífaros e zabumbas.

Príncipe Odilon e Rei-de-Congo anunciavam a chegança. Na cabeça de Maria, que muitas latas d’água carregara, os sentidos estavam em alerta, prontos a decifrar os sinais. O corpo mexido por mãos alheias, sempre contra o desejo, se arrepiava de enlevo. O pensamento endoidava, corria sem dono e sem peias. Príncipe Odilon vinha da África. Reconheceria o seu cheiro, e a cor preta da pele.

Rei-de-Congo vinha da África, das congadas, com capacete de espelhos, um séquito de figuras valentes. Trazia lanças e flechas, o sangue esquentado nas veias. Dispunha-se a matar os que riam de Maria. Rei-de-Congo e Príncipe Odilon, entronizados na doidice de Maria, donos do seu pensamento. Na fala do povo sem respeito, tudo apenas brincadeira, apenas vontade de rir. Na cabeça de Maria, tudo assumido real.

O meio

Quando se deu fé, Maria estava doida, ou sempre fora, com as lembranças de corpos negros dançando em volta de uma fogueira, com o sonho da travessia de um mar. Agora, entrava na simplicidade das pedras do rio, onde sentava para enxugar-se do banho. Misturava-se ao lixo das ruas e a cor da roupa ficava da mesma tonalidade do seu corpo. Pertencia ao domínio dos meninos, das pedradas, das portas de igrejas. Vivia com mendigos e tinha por irmãos as crianças sem pais. Era a Maria das calçadas, da cuspidela dos bêbados, de todas as sobras, de todas as faltas. Era a Maria das noites mal dormidas, de olhar as estrelas, das primeiras enchentes do rio, de trepar nos pés de goiaba, de chupar as mangas podres. Era a Maria de olhar perdido e de não trabalhar. E era a de trabalhar até quase morrer. Era a de ganhar um vintém por cinco litros de arroz pilados. Era a de esperar por Príncipe Odilon e Rei-de-Congo, que não tardariam a vir da África.

– Maria, Mariinha, Mariá. Que é feito do teu rei, do teu príncipe de outras terras, vestido de couro cru, com palhas pelos cabelos, com grande força nos braços e a macheza de um touro? Maria, Mariinha, quando é que vêm te buscar? Quero comer dessa festa, embriagar-me de cachaça, da bebida de teus iguais.

– Maria Caboré, Rei-de-Congo acaba de chegar. Vem montado em elefante e é preto como noite escura. Traz um exército com mais de mil negros nus. Vão te levar para o Congo, onde serás rainha de negros, de gente do teu feitio. Irás morar em casa de palha, usar ossos no pescoço, receber os espíritos dos teus deuses.

– Maria, vem trabalhar. Bota esta lata d’água. Passa a ferro esta roupa. Lava esta casa. Vai naquele lugar. Toma este prato de comida. Vem cá, nega boazinha. Trabalha mais ligeiro. Cuida destes meninos. Limpa aquelas panelas. Cozinha este feijão.

A peste

Veio a peste. Maria vivia a simplicidade da sua loucura e do seu sonho. A cidade se esquentava num calor diferente. Nos fins de tarde, as famílias sentavam nas calçadas. Nas cozinhas, Maria lavava pratos. De noite, enquanto todos dormiam, ela andava pelas ruas, olhando as estrelas e tentando ver, no céu, o seu povo vindo buscá-la. O tempo ficava mais quente, as pessoas mais inquietas. Havia no ar um presságio de coisa ruim. Os sinais da grande desgraça foram vistos e identificados.

Os ratos, encontrados mortos no meio da rua e dentro das casas, foram o primeiro aviso. Era assim em todos os lugares e ali não teria por que ser diferente. Havia muitos armazéns de farinha na cidade, e a eles atribuiu-se a culpa, dizendo-se que era lá onde os ratos se juntavam e procriavam. A peste bubônica, naquele recanto do mundo. Ninguém queria parecer contaminado. Cuidava-se em manter a aparência da mais absoluta saúde. Com isso, os que mais sofriam eram os velhos, que não podiam ter o descanso do meio-dia, pois deitar em hora que não fosse à noite já era atestado da doença. Eles passeavam por dentro das casas e pelas calçadas, apoiados nos braços dos filhos e, sonolentos, sorriam para os vizinhos. E isso no começo, quando só haviam aparecido os três primeiros casos de empestados. Depois que a moléstia se alastrou, ninguém se arriscava a sair de casa. As pessoas, disfarçadamente, se vigiavam. A cidade vivia do medo e da desconfiança. Qualquer comportamento esquisito poderia ser a doença.

Foi quando veio da capital, distante quase cinquenta léguas, uma equipe de médicos, todos especialistas, que se instalaram no seminário dos padres, lugar que passou a funcionar como hospital. A partir daí, não se pôde mais morrer em casa. Ao menor calor do corpo, por qualquer tumoração surgida nas virilhas ou sovacos, o paciente era levado para o seminário e de lá nunca retornava. Surgiram boatos a respeito. Falavam que os doentes, lá chegando, recebiam dos doutores uma injeção para aliviar a dor, que os aliviava da doença e da vida. Diziam ainda que os médicos e enfermeiras andavam mascarados, com umas roupas brancas e compridas arrastando pelos pés. Que os padres se trancavam dentro da capela queimando incenso e cantando uns cantos que só lembravam o juízo final.

A cidade vivia no terror. Os homens, mulheres e até mesmo crianças passaram a ser vigias uns dos outros. À menor suspeita fazia-se uma denúncia e, no mesmo dia, chegava o corpo clínico e levava o apontado, sem que ele pudesse esboçar qualquer defesa. A família punha-se em prantos e encomendava custosas coroas de hortênsia, flor rara naqueles tempos de peste.

Enquanto as pessoas se escondiam umas das outras e condenavam a casa de onde tivesse partido um empestado, Maria Caboré prosseguia nas suas visitas, nos seus servicinhos, nos recados vai-lá-traz-cá. Era a única pessoa viva, a única que não fora contaminada. Nunca lavou tanta roupa, nunca andou em tantos lugares como naquele tempo. Se pediam que não fosse numa casa porque era certo ter gente doente, ela ia. Agora, sozinha no meio das ruas desertas, sentia-se dona da cidade, já que todos se fechavam com medo.

Os armazéns de farinha foram queimados para matar os ratos e exterminar o mal pela raiz. Maria viu as chamas e nunca mais as esqueceu. Pensou em Rei-de-Congo e Príncipe Odilon chegando e tocando fogo na cidade, para levá-la à África, onde seria coroada rainha. Mas, enquanto eles não chegavam, servia a quem precisava, do jeito que sempre serviu.

Cansava de vagar sozinha, pelas ruas. O tempo se tornava cada vez mais quente. O sol parecia queimar tudo. Havia um medo espalhado. Maria deu também para identificar sinais. Sentia um gosto amargo nas mangas que chupava. Era diferente o canto do sabiá-peito-amarelo. O vento soprava para lados diferentes. À noite, não conseguia dormir. Ouvia vozes e gemidos. Tentava pensar em Príncipe Odilon e Rei-de-Congo e temia que eles estivessem demorando demais. Passou a esconder-se do povo e só a custo fazia algum trabalho.

Um dia sentiu-se cansada, o corpo mole, não teve disposição para terminar de lavar a roupa de dona Aninha Vilar. À noite, teve febre e delirou. Via areias a perder de vista. Num esforço, procurou um pouso, um canto que fosse seu, e embora a cidade estivesse quase deserta, sentiu-se estrangeira ali, agora, como em toda a vida. Deitou-se numa calçada e tocou o corpo ardendo em febre. Sentiu os tumores nas virilhas e compreendeu. Rei-de-Congo e Príncipe Odilon teriam de se apressar. Experimentou cantar como sempre fizera. Cantou, cantou e acabou chorando. Depois, saiu gritando pelas ruas, correndo pelas portas com os sinos das igrejas tocando, os fogos estourando no céu, proclamando, aos gritos, que Príncipe Odilon e Rei-de-Congo não tardariam a chegar.

No dia seguinte, a cidade inteira procurava por ela mas ninguém a encontrava. Havia muita roupa para lavar, muitas casas por varrer e Maria não aparecia.

A morte

Maria Caboré tem febre e se contorce. Os bubões dilaceram a carne. O suor banha o corpo. Os olhos se fecham e veem as savanas da África. Príncipe Odilon e Rei-de-Congo estão sentados em seus tronos e têm, aos pés, leões mortos pelos guerreiros que foram à caça. Uma velha canta um hino de morte. Os dois reis esperam pela sentença dos búzios. O oráculo manda que partam logo. As majestades se vestem. Rei-de-Congo coloca na cabeça o capacete de espelhos e fitas coloridas. Príncipe Odilon amarra no pescoço o colar de dentes de javali. Maria Caboré grita e os médicos lhe apertam os pulsos. A África se queima debaixo do sol. Os animais se enfurecem. Homens brancos correm atrás de negros que fogem para dentro da mata. Vieram roubá-los, fazê-los seus escravos. Disparam trovões. Uma mulher negra joga-se dentro do rio com seus dois filhos.

Maria Caboré resiste, mas os médicos são muitos. Amarrados por correntes, os homens negros se comprimem no porão do navio. Têm medo. A terra da África se estorrica de tanto sol e a mata não consegue esconder os seus filhos, que buscam esconderijo. Os deuses africanos se sentem fracos com a fúria dos brancos pisando suas imagens. Sopra um vento quente, e mulheres negras se atiram nas rochas. Há um sorriso no rosto de Maria Caboré. Príncipe Odilon e Rei-de-Congo estão chegando em um navio e trazem muitos guerreiros armados. Os orixás sobrevoam as suas cabeças. As mãos empunham armas e as gargantas cantam a guerra. O mar trouxe-os rápido. As majestades saltam em terra e a terra treme.

Quem chega veio buscar os que foram arrancados de suas casas e trazidos para um mundo que desconheciam e que não desejavam. Já vão chegando os reis com espelhos nos capacetes e acenam para Maria. As pessoas se escondem com medo do brilho e da fúria dos guerreiros. Príncipe Odilon e Rei-de-Congo tomam as mãos de Maria e se ajoelham. Não há ninguém em volta, pois todos fugiram. Maria já avista o seu trono e a sua coroa de rainha. Os médicos conseguem, finalmente, dominá-la e aplicar-lhe a injeção de alívio. A África vai se fazendo perto. Como no sonho, o mar é atravessado. Maria sente o sol que sempre lhe queimou o corpo, avista as savanas com os animais em correria. Mesmo ausente, compreende, agora, que estivera sempre ali. É recebida com grande festa. Uma de cada lado, as majestades de faces negras e lisas sorriem. Maria Caboré, cercada por mulheres, é vestida, enfeitada e coroada rainha.

[social_share show_share_icon="yes"]
No Comments

Post A Comment