09 jan Amor para além da vida
Minha avó materna narrou a morte de seu marido Pedro Zacarias de Brito 1001 vezes, como se fosse a Sherazade de uma única história. Considerando os dias e horas de nossa convivência, esse número pode ser bem maior. A perda do esposo tornou-se um marco na vida de Dália Nunes de Brito.
Nos primeiros anos de viuvez ela cobriu-se de negro, um figurino que poderia incluir mantilha sobre a cabeça, mangas compridas e meias até os joelhos. Os vestidos chegavam aos tornozelos e seguiam um padrão único de costura. Apenas no final da vida, que durou quase um século, ela aceitou amenizar o luto.
Tamanha rigidez na expressão de uma perda faz imaginar uma pessoa amarga, dura e até cruel. O oposto do que sempre foi Dália Nunes, a mais alegre, doce e brincalhona das criaturas, uma quase maluca nas suas invenções e fantasias.
Meu avô tinha apenas 42 anos quando foi encontrado morto às margens do riacho Jardim, afluente do Carás, que deságua no Salgado, que corre para o Rio Jaguaribe, que desemboca no oceano Atlântico, bem longe, em Aracati. Dália contava que o Jardim estava de cheia, a correnteza aumentando, e faltaram apenas dois palmos para o corpo de Pedro ser arrastado pelas águas. Nessa parte da história ela traçava com a mão calosa a medida exata entre a firmeza da terra e a fluidez perigosa da água. Chorava e nós, seus netos sensíveis, também enchíamos os olhos de lágrimas.
– Pedrinho saiu de casa bem cedo, ia visitar um afilhado doente, lá no Inxu. Na volta, ficou de passar na vazante, tirar um cacho de bananas e trazer pra casa. Tinha chovido nas cabeceiras do Jardim e o riacho botou água. Me despedi dele na calçada. Ele me beijou primeiro, depois beijou o caçula de seis meses. Nove filhos de cobrir com um balaio, o mais velho com 13 anos. Perguntei se voltava pro almoço e ele garantiu que sim. Segurava um bolo de massa puba na mão esquerda, pra comer no caminho. Nunca foi homem de fatias, só comia bolos inteiros. É verdade que eu assava os bolos em formas pequenas, em latas de goiabada.
Nessa passagem do drama ela voltava a chorar e nós esperávamos em silêncio ou pranteando, coniventes com a dor. A avó nunca alterava uma vírgula, uma pausa ou marca de choro do seu relato. Era de uma precisão matemática, como se tivesse gravado em escrita a história elaborada durante anos, até chegar ao texto definitivo, aquele que decidira fixar como verdadeiro. Memorizou-o e repetia as cenas disciplinada, atenta em não introduzir cacoetes ou falas estranhas ao papel.
– Deu nove horas e ele não chegou pro almoço. Eu olhava da janela e via o céu ameaçando chuva. Vai ver tinha aceitado o convite dos compadres, sempre matavam galinha para as visitas. Pedrinho era homem guloso. Às dez meu coração apertou-se. Um vim-vim cantou no pé de cajarana e pressenti coisa ruim. Esse pássaro agourento não traz notícia boa. Às onze mandei chamar João Leandro, o cunhado. Ele chegou com os trabalhadores do engenho. Pararam a moagem, apagaram o fogo dos tachos. Quando olhei o rosto dele, estava branco da cor de um capucho de algodão. Me contou que tinha deitado no quarto, dava um cochilo depois do comer, quando escutou a voz chamando João, João. Reconheceu ser do cunhado, que ele tanto estimava. Abriu a janela e não viu ninguém, saiu no terreiro, chamou compadre Pedro, chamou, chamou e nada. Gritou por Eufrásia. Eufrásia! Alguma desgraça aconteceu ao teu irmão. Nessa hora o portador bateu palmas e deu meu recado. Eufrásia acendeu vela benta, queimou ramo, mas de nada valeu. Eu chamava Pedrinho pelo meio das roças, as meninas chamavam papai, papai, e nada. Os homens se espalharam feito um enxame de abelhas, quando botam fogo na colmeia. Vi de longe os trabalhadores carregando o corpo, deitado numa tábua. Nem sei onde arranjaram aquela porta. Precisavam de madeira fornida. Pedrinho era homem grande, pesado.
Na foto em que aparece deitado no interior de um caixão, elegantemente vestido num paletó, as mãos cruzadas sobre o peito, barba por fazer, olhos bem fechados, não se avaliam a altura e o peso do homem cujo rosto sereno, copiado das feições do pai, se repetiu em gerações de filhos, netos, bisnetos e tataranetos. O retrato emoldurado ocupou o lugar de honra da casa grande de nossa avó, a parede principal da sala, abaixo da imagem do Coração de Jesus, uma litografia suíça do século XIX, parecendo um ícone russo. Um lugar justo, precioso na vida de Dália, que amou o marido tanto como ao próprio Deus, para quem ela rezava três rosários: um de madrugada, um ao meio dia e outro ao anoitecer. Lugar tão definitivo que a fez escolher nunca mais casar, mesmo tendo apenas 30 anos quando enviuvou, mesmo sendo proprietária de terras, possuidora de rara beleza e carecendo dar um novo pai aos filhos.
– O amor de Pedrinho foi tanto que me bastou. Ainda agora, se fecho os olhos, sinto o gosto dos beijos dele. Digo a vocês: casem, beijem, porque não tem coisa melhor na vida do que beijar.
Talvez apenas narrar, narrar sempre, num recurso da oralidade em que se empregam os lábios, a língua e o palato. Através da repetida história do marido, Dália manteve Pedrinho vivo, onipresente como o Todo Poderoso de coração sangrante e coroado de espinhos, os olhos virados para o céu, os dedos das mãos apontados para cima. Foi a Sherazade de uma única história. Graças a sua narrativa viveu lúcida, serena e cativante, arrancando à morte seu amor eterno, não permitindo que ele a abandonasse, nem largasse a casa ou os roçados.
No casarão, dividido ao meio por parede, havia uma ala interditada, onde se guardaram os pertences de Pedrinho, celas, estribos, arreios, roupas e sapatos. Bastava aos netos entrarem naquele mundo à parte que escutavam a voz sem lamento. Para Dália não existiam paredes, Pedrinho estava em toda parte e não parava de falar.
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