O herói grego Ulisses e os heróis do BBB | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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O herói grego Ulisses e os heróis do BBB

Vocês ainda se lembram de Kleber Bambam, o rapaz que ganhou o primeiro Big Brother Brasil, da TV Globo? Pergunto porque é possível que ele tenha desaparecido da mídia, caindo no esquecimento. A velocidade para se fabricar um herói moderno é a mesma para esquecê-lo ou destruí-lo. Heróis e objetos de consumo são a mesma coisa. Kleber teve grande votação dos que acompanhavam o BBB, dando pontos de audiência à Globo. Surgiram estudos sociológicos e psicológicos para explicar o fenômeno como protótipo do novo homem brasileiro. Essa autoimagem nacional é bem pior que a do herói sem caráter Macunaíma, de Mário de Andrade.

Vocês lembram o Ulisses dos gregos? O herói de três mil anos, antes de ser fixado por Homero no poema Odisseia, já era cantado pelos trovadores, transformando-se num ícone ocidental. Ele também é considerado protótipo do homem moderno, representando a passagem do estágio mítico ao logos. Entre as suas qualidades estavam a capacidade de pensar e convencer, o autodomínio e a resistência ao sofrimento. Seus defeitos eram a falta de escrúpulos, a crueldade e a ambição. Ulisses é tão significativo para o Ocidente que em todas as épocas foi personagem de tragédias, poemas, romances e óperas.  Eurípides, Horácio, Dante, Kazantzákis e Tennyson o detrataram ou engrandeceram. O romance que prenuncia a cultura em desencanto, segundo Jacques Barzun, é o Ulisses de James Joyce, cuja construção é baseada no poema de Homero.

É possível traçar alguma comparação entre Bambam e Ulisses? A mais evidente é a duração do mito. O brasileiro Kleber se volatilizou em pouco tempo. Ulisses ainda significa a criação coletiva de uma sociedade mítica, cantado em poesia e música, de geração em geração, guardado na memória até que Homero desse forma escrita ao que era da tradição oral.

Kleber foi um simulacro, artifício da Globo e de Boninho para ganhar milhões e alimentar a fantasia dos telespectadores. O fariseu Pedro Bial, camuflado em poeta e homem culto, enchia os bolsos de dinheiro e saudava os malucos enclausurados como “heróis da casa”. E agora, haja ensaios de sociologia, psicologia e filosofia para interpretar a nova Auschwitz do BBB 21. Haja intelectuais, professores e midiáticos disputando a cena com os engalfinhados, criando delirantes teorias validadoras dos absurdos e desumanidades praticados em nome da audiência e do lucro milionário da televisão.

Ulisses pertencia à nobreza grega e Kleber à classe média baixa do Brasil. Ulisses foi educado segundo uma ética complexa, a Arete, em que o indivíduo buscava a imortalidade através dos seus feitos guerreiros, não temendo a morte e desejando que sua fama continuasse após ele morrer. Kleber aspirava “pegar a Kombi, sair pela estrada, atolar no meio do caminho e fazer sexo.” Ulisses construiu um engenho, um cavalo de pau, que permitiu aos gregos se esconderem no seu interior, entrando na cidade de Tróia e vencendo os inimigos sitiados. Esse feito tornou-se tão famoso que deu origem à expressão presente de grego, até hoje usada quando se ilude alguém.

Kleber inventou uma boneca, Maria Eugênia, que segundo os analistas assegurou-lhe a vitória no Big Brother e teve a patente vendida. Também cunhou expressões que andaram pela boca de nossa gente: “no meu modo de vista” e “pra mim eu sou dessa conclusão”. Bambam não foi cantado por poetas como Eurípides, mas os jornalistas gastaram os adjetivos sincero, alegre, brincalhão e emotivo para se referirem a ele. A sua aventura durou pouco mais de dois meses e teve por espaço físico uma casa de estúdio. É pequena quando comparada aos dez anos que Ulisses vagou por ilhas e mares, até retornar a casa. Odisseia virou sinônimo de jornada difícil e perigosa. O feito de Kleber recebeu o epíteto de vitória dos simples.

Pode parecer que retomo a veia moralista de Montaigne, analisando o heroísmo do nosso tempo. Somos avessos à moral e à ética, talvez escaldados pela hipocrisia das Igrejas Cristãs e pela repressão das ditaduras políticas, como o atual bolsonarismo. Mas houve um tempo, não muito distante, em que as lendas, as fábulas e os romances eram criados com um fim educativo, ético e moral. Os heróis representavam modelos a ser imitados. O povo tinha mitos exemplares, atuando na contenção ou emancipação da sociedade.

Ulisses sobrevive há mais de três mil anos, tornou-se mito civilizador, apesar das transformações que sofreu desde Homero até Joyce. O Ocidente não criou nada que o representasse melhor. Será que Bial desejava escrever um poema sobre Bambam e alça-lo à condição de herói imortal? Quem sabe? 

Reinventamos o significado de heroísmo, elaborando o anti-herói. Proclamamos a morte de Deus, banimos o eterno e o sagrado. Cultuamos o transitório e o efêmero. Ulisses desafiava os deuses, mas temia as Fúrias e invocava proteção a Atena. Kleber Bambam, quando foi interrogado sobre a mulher dos seus sonhos afirmou que “não existe a mulher e sim o homem que é Deus”. É difícil interpretar com seriedade mais esse disparate. Será que ele negava a existência do feminino, afirmando um monoteísmo masculino? Que homem-deus era esse a que ele se referia? Seria ele próprio?

O excesso de exposição da imagem e a fama ilusória criam fantasias como Kleber Bambam. Terrível é imaginar que além de adorá-lo como um suposto herói, adorem-no como um novo deus.

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