05 jun Carta de Miguel Sanches Neto
Publico nessa página algumas das cartas que recebo, comentando os meus livros. Sempre gostei de cartas e me iniciei na literatura através delas. Quando um leitor diferenciado, ou um escritor nos escreve, ele se desfaz do peso da crítica e nos fala de perto, sem a obrigação de ter de construir uma peça literária, ou inventar um novo livro. Guardo algumas dessas cartas porque sinto nelas a espontaneidade de quem foi tocado pelo que leu.
Abaixo, carta de Miguel Sanches Neto sobre Galileia.
Prezado Ronaldo,
Li Galileia e fiquei muito comovido com a grande história que você escreveu.
A viagem de volta à fazenda dos Inhamuns é de uma beleza épica. Os três primos fazendo a viagem de retorno, o contato entre o sertão e o mundo, os mistérios da família, a falta de um sentido agregador, pois tudo se dispersa, até o final em que o narrador se deixa perder. Ao invés de seguir o caminho reto para casa, ele faz da viagem de volta uma continuação do movimento rumo ao centro que o desestabiliza, terminando com a força de uma loucura sempre entrevista.
O romance tem uma beleza áspera, própria do sertão, e coloca o leitor no centro de uma família que se alastra pelo mundo, que vive num centro que se desfez, impondo um novo tempo, em que já não se escondem as fraquezas, em que a própria fraqueza exposta talvez seja o último ato de coragem, de força, de revolta contra o destino.
Ao focar personagem por personagem, dando-lhes capítulos, você construiu um livro que deixa claro sua opção pelo humano, pelos sofrimentos sofridos na pele; é uma ampliação criativa do recurso que está em Vida Secas, do Graciliano.
Adonias tem uma posição preconceituosa em alguns momentos, porque teme a si próprio, mas no final se depara com o seu abismo interior e se iguala aos demais. Todos são/somos iguais. Tudo da mesma e precária matéria.
A passagem central para mim é o momento em que Adonias vê a foto secreta da avó de pés descalços. Que poesia dura você coloca ali. Somos todos descendentes destes avôs rudes, cuja alegria vem deste contato com o chão, mesmo quando nos perdemos pelo mundo da cultura. Voltar a Galileia é voltar à loucura, e a tragicidade do livro vem daí, mas é voltar também a um mundo de pé no chão. E isto traz o dado telúrico do livro.
Você escreveu um dos grandes livros da literatura brasileira contemporânea. Parabéns.
Abraço deste seu leitor do interior do Paraná.
Miguel Sanches Neto
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