18 mar Viver com medo de viver
(Diário do isolamento 1)
Os leitores talvez estranhem o número 1 no Diário do isolamento. Na terça-feira passada, dia 16 de março, completei um ano vivendo sob medidas restritivas, período em que escrevi cerca de 40 crônicas, todas motivadas pela pandemia do coronavírus. Nunca imaginei que chegaríamos aos números alarmantes alcançados hoje. Não tenho coragem de transcrevê-los, receio aumentar o desespero. Nova quarentena se inicia e mais um ano de incertezas sobre o futuro. Decidi retomar a escrita do diário, zerar o calendário, já que estamos num recomeço.
Não fui eu que criei a expressão “Viver com medo de viver”. Uma mulher simples do campo referiu-se dessa maneira à vida na pandemia. Em todos os níveis sociais as pessoas sentem-se abaladas na fé em Deus, na Ciência, na Política, no Homem.
No filme O sacrifício, do russo Andrei Tarkovsky, vive-se a ameaça de uma guerra nuclear, que acabaria com o nosso mundo. Em Melancolia, do dinamarquês Lars von Trier, o terror é provocado pela movimentação do planeta Melancolia em direção à Terra. Nos dois filmes, o temor de um fim próximo da humanidade precipita sentimentos contraditórios, medo e loucura.
Vivemos algo parecido na epidemia de Covid-19. A Morte, que até pode ser negada pelo crescente hedonismo, nos ameaça e nos mantém suspensos. As bombas atômicas e o planeta desviado da órbita natural nos filmes de Tarkovsky e Trier são substituídos por um vírus em mutação.
Nessa atmosfera de ficção científica, lancei um livro de narrativas curtas, chamado A arte de torrar café. Ele estava pronto desde 2019, mas teve sua publicação adiada por conta da pandemia. Há nele, desde a apresentação, uma profecia sobre o tempo sombrio que vivemos. Sombra que paira nas crônicas, nos ensaios e perfis biográficos cheios de esperança e epifanias.
Por esses dias, Avelina me presenteou com três volumes de contos de Varlam Chalámov, um escritor russo vítima do stalinismo. Preso em campos de trabalhos forçados durante mais de 20 anos, por discordar da política totalitária de Stálin, Chalámov conseguiu escrever relatos impressionantes sobre sua experiência. Massacrado, mesmo assim ele escreve.
Ler Chalámov implica numa pesada carga de sofrimento para quem lê. Imagine o que isto significou para quem viveu as tragédias relatadas e se decidiu a revivê-las durante a escrita, confessando sua perda de fé na literatura.
Transcrevo um pequeno depoimento do autor.
“Por que escrevo contos?
Eu não acredito na literatura. Não acredito em sua capacidade de corrigir o homem.
A experiência da literatura humanista russa resultou, diante dos meus olhos, nas sangrentas execuções do século XX.
Eu não acredito na possibilidade de evitar um fato, de anular a sua repetição. A história se repete. E qualquer fuzilamento de 1937 pode ser repetido.
Por que então escrevo?
Escrevo para que alguém, apoiando-se em minha prosa alheia a qualquer mentira, possa contar sua própria vida, num outro plano. Afinal, um homem tem de fazer algo.”
No Comments