23 mar A voz do livro
Livros não são tubos de ketchup, maionese ou mostarda, por mais que a economia de mercado insista em considerar a mesma coisa.
Nada melhor do que falar de livros, assunto controverso quando insistem no desprestígio da literatura, se comparada às redes sociais, ao YouTube, cinema e televisão, ou mesmo à música popular. O valor de uma obra de arte, pelas leis de mercado, se mede exclusivamente através do número de vendas e alcance de público. O escritor contemporâneo está mais sujeito do que nunca ao gosto do leitor, e já existe quem escreva, como nas novelas de televisão, orientado por pesquisas sobre assuntos e tendências da moda. Será que o sucesso diminui a liberdade do autor, interferindo na qualidade do que ele produz?
Dostoievski conheceu o êxito sem nunca mudar o estilo. Escreveu romances sombrios – Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, Os Demônios –, lidos e apreciados pelo grande público. Eram outros tempos. Kafka quase não publicou, não fez sucesso em vida, mas também criou em absoluta liberdade.
Os gostos variam, e não é de agora que os editores preferem publicar autores que vendam bem. Há investimentos milionários em alguns lançamentos. Mudam os leitores, as escolas, as modas, a ponto de nos parecer estranho que em algum tempo se interessaram pela poesia de Racine ou Quevedo. Poetas como o italiano Dante Alighieri, mergulhado no inferno da Divina Comédia, se consumindo e morrendo ao final da criação, é cada vez mais impensável nos tempos atuais. A imagem mais próxima desse exemplo seria a dos roqueiros drogados. Mas divagaríamos por outras estratosferas ao analisar o fenômeno.
Ernesto Sabato e Jorge Luis Borges, em conversa com Orlando Barone, forjam o conceito de escritores que escrevem para escritores, referindo-se aos que atingem um público especializado em literatura. Kafka, Joyce e o próprio Borges seriam desse time. Em contrapartida, existem os que atingem o grande público, provocando a seguinte pergunta: é de melhor qualidade a literatura que agrada a muitos leitores? Ou o contrário: a literatura que alcança apenas um público especializado é superior à outra literatura? E ainda: qual o valor da literatura que agrada tanto ao grande público como aos especialistas? Só o tempo dará essas respostas. Ou nunca dará.
Não podemos exigir o bom desempenho de vendas de um autor. Livros não são tubos de ketchup, maionese ou mostarda, por mais que a economia de mercado insista em considerar a mesma coisa. Livros são obras de arte. As peças publicitárias não são, mesmo que nos enganem com truques. Uma fábrica de cervejas pode exigir que a empresa de publicidade venda o seu produto. No caso de uma obra de arte, no máximo pode-se desejar que ela se venda bem. Tratamos com outra medida de valor e grandeza. Nunca esqueçam que Van Gogh só vendeu um único quadro na vida. Numa entrevista, João Cabral de Melo Neto achava irrelevante a baixa vendagem de um livro seu. Pedia aos leitores que considerassem os movimentos e transformações que a sua poesia era capaz de desencadear.
Se fosse possível contar o número de exemplares vendidos das Folhas de Relva, de Walt Whitman, desde a sua publicação, chegaríamos a uma cifra insignificante, se comparada ao que vendeu algum dos best-sellers da moda, como Harry Potter. No entanto, nenhuma obra foi tão revolucionária, provocou tantas mudanças de costumes. Ela antecedeu o feminismo, a luta contra o racismo, a liberdade sexual, para não ficar apenas na análise da qualidade poética. Whitman não pode ser avaliado apenas pelo seu livro, mas por toda a literatura que não teria existido sem sua poesia.
Apesar da fama alcançada, o Dom Quixote de Cervantes não é uma obra lida nos dias de hoje. Os tropeços se dão por conta dos verbalismos, os períodos longos e os arcaísmos. Mas o Quixote permaneceu atual como modelo do humano, de nossos sonhos e ridículos. Isto prova que os livros também sobrevivem através de seus personagens. Mesmo que a linguagem se torne anacrônica, Édipo, Medeia, Macbeth, Hamlet, Enéias, Madame Bovary, Natasha, Raskólnikov e Diadorim continuarão vivos.
Cervantes não criou um idioma próprio como Joyce. Nem Machado de Assis reinventou o português como Guimarães Rosa. Alguns autores escrevem da forma menos elaborada possível, e outros preferem transformar a língua num laboratório de experiências.
A linguagem escrita possibilitou uma infinidade de combinações das palavras, desde seus primeiros registros, e a cada dia se mistura a novas formas de arte. No ato solitário da leitura, quando escutamos a voz do autor como se fosse a nossa própria voz, o livro se recria.
É uma voz que não cala, silencia por tempos, se perde, se oculta, mas ressurge com o mesmo fogo do ato de criação. Muitos livros que se perderam e foram reencontrados, atestam a veracidade dessa voz. Para que isso aconteça, basta que a obra tenha nascido com a força do eterno. O que só o gênio, o acaso e o tempo lapidam.
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