11 abr A espada e a cruz
Na minha cidade havia uma biblioteca da diocese, com poucos livros, quase todos ruins. Eram refugos de bibliotecas particulares, aquilo que não se quer guardar em casa, porque não presta e só ocupa espaço. Mas livros são sempre livros e num país de analfabetos jogá-los fora é quase crime.
A bibliotecária pertencia à Congregação Mariana e usava uma fita azul no pescoço, com medalhas e escapulários de Nossa Senhora. Como os leitores eram raríssimos, ela ocupava o tempo rezando ou fazendo crochê e deixava que a poeira e as traças cuidassem do resto. Foi no meio dessas prateleiras rudes e livros carcomidos que eu tive a primeira impressão de uma biblioteca.
Entre as muitas preciosidades, uma se destacava: a coleção Grandes Romances do Cristianismo. Li todos. O livro que mais me impressionou foi Perseguidores e Mártires. Em quase quinhentas páginas se contava como foram mortos centenas de cristãos, queimados em fornos, cozinhados em azeite, arrancados os olhos, devorados nos circos, crucificados, afogados e apedrejados. Um verdadeiro tratado das perversidades humanas, carregando nas cores para enfatizar a coragem e a santidade dos primeiros cristãos. A bibliotecária percebia meu horror e fascínio pela carnificina e dava jeito de encontrar mais histórias escabrosas para eu ler.
O que eu não era capaz de fantasiar lendo os livros, o cinema da época, pródigo no mesmo tema, completava com imagens. E haja palácios romanos com filas de cristãos amarrados em postes, ardendo em chamas, e mártires crucificados, e santinhas devoradas por leões e tigres, tudo pela justa causa da fé. Minha sensibilidade infantil ficou irremediavelmente marcada. Dez anos de psicanálise não conseguiram reverter o estrago.
Se comparamos aos enlatados americanos de agora, os dramalhões históricos são água com açúcar. Dá pena e vontade de rir. Um único filme da sessão da tarde na TV, vale por cem desses filmes de martírios. Mais que mudança de tempo e estilos, o que aconteceu foi uma banalização da violência. Numa cena reproduzida por Fellini, no filme Amarcord, uma plateia italiana chora ao assistir A Espada e a Cruz. Inconcebível nos dias de hoje.
Mergulhando em leituras, eu me perguntava por que milhares de pessoas se reuniam no Coliseu romano para ver seus semelhantes trucidados das formas mais cruéis. Não compreendia como Roma se arvorava centro cultural do mundo, povo mais civilizado da terra, chamando de bárbaros os que estavam além de suas fronteiras. Consolava-me dizendo: “O mundo em que vivo é outro e, felizmente, o homem contemporâneo é bem melhor. Ele já não se entrega ao prazer da violência pura, nem se deleita com o sofrimento do semelhante”. Muito jovem, faltava-me discernimento.
A história recente tem provado que fui otimista, acreditando que os homens e as nações evoluíram para melhor. Que os mecanismos engendrados em Roma para mostrar a força e o poder do império, mantendo hipnotizada a grande massa, fazem parte do passado. Hoje, existem outros mecanismos, com o mesmo fim.
A plateia vê o circo sem sair de casa. Confortavelmente sentada, comendo pipoca e tomando Coca-Cola, ela pode assistir Bagdá ser bombardeada e massacrada. Vê multidões de famintos pelas ruas de cidades destruídas, crianças queimadas, prisioneiros feridos e humilhados, tudo em nome do direito dos mais poderosos.
Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, etc., nações que se assemelham ao Império Romano pelos fumos de poder e glória, têm mostrado o novo circo aos quase oito bilhões de habitantes do planeta, através da televisão. Como no Coliseu dos filmes americanos de terceira categoria, é o imperador Biden quem levanta ou baixa o dedo, condenando e salvando vítimas, enquanto os sicários ingleses e russos, e outros etc., etc. providenciam a taça de vinho para o brinde.
Em Roma, poucos cidadão condenavam o circo. A voz do filósofo Cícero, protestando contra a barbárie, era solitária. A turba romana levantava os dedos pedindo clemência para o vencido, sobre cujo peito pairava uma espada. Cabia ao supremo imperador decidir sobre sua vida ou morte. Ainda é o imperador americano, ou russo, ou inglês, etc., etc., quem decide até quando a espada entrará no peito de brasileiros, venezuelanos, iraquianos, sírios e de outros cidadãos do mundo.
Mas a vítima já não é tão passiva, mesmo que nunca leve a melhor. Ela reage contra a vontade do inimigo. E não está sozinha. Do lado de fora do Coliseu americano há milhões protestando, de todas as maneiras. Pessoas para quem a América do Norte tornou-se bárbara. A gloriosa América de Whitman, com o sonho de democracia e fraternidade, já não merece o canto do seu mais nacionalista poeta:
Fora com os temas de guerra!
Fora com a própria guerra!
Saia de minha vista repugnada
para não voltar mais
aquele espetáculo de cadáveres
enegrecidos e mutilados!
Aquele inferno indescritível
e recoberto de sangue
bom para tigres selvagens
ou lobos de línguas ávidas,
não para seres humanos
dotados de raciocínio!
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