08 jun Cangaceiros versus cowboys
Eu tive uma namorada na adolescência que lia bastante e seu projeto de vida era escrever um romance. Nada demais se considerarmos que na França do século XVIII quase todas as mulheres da nobreza eram escritoras. Ela nunca transpôs a Chapada do Araripe e resolveu ambientar o seu livro em Veneza. Começava com dois personagens passeando pelas ruas da cidade. Pareceu-me absurdo. Imaginava que em Veneza, além de casas, igrejas e teatro só existia água e as pessoas se locomoviam em gôndolas.
Muitos escritores ambientaram suas peças, contos ou romances em lugares diferentes daqueles onde viveram. No caso de minha namorada, a escolha da cidade italiana se fazia por vergonha de assumir a cultura local. Ela vivia presa ao colonialismo que levou a literatura brasileira a repetir modelos europeus e norte-americanos. Hoje, nem sei que lugar ela escolheria para sua história. Sofremos um novo colonialismo, o do eixo Rio/São Paulo. Desde a década de 30, quando Gilberto Freyre publicou o Manifesto Regionalista, o adjetivo virou referência geográfica mais que artística, significando tudo o que se produz fora do Sudeste.
Um amigo perguntou-me outro dia por que nenhum crítico de arte qualifica como regionalista o cinema de gangster americano, ambientado em Chicago, com bandidos e detetives de chapéus e capas pretas. Ninguém considera regionalista a literatura e o cinema sobre o oeste americano, cheio de diligências, carroças de colonizadores, cowboys de calças apertadas e revólveres na cintura. John Ford, John Huston e Sam Peckinpah nunca foram chamados regionalistas, por mais que caprichassem nos estereótipos de índios apaches e bandidos tomando uísque no balcão de um saloon. Alguém ouviu falar que Steinbeck é regionalista? Mas Graciliano Ramos e todo o cinema nacional sobre cangaço são regionalistas.
Não chamam regionalistas os filmes de gangster ou de faroeste porque são produzidos num país que domina a economia do mundo e determina os valores de consumo, impondo modelos aos outros países. Igualmente não se chama regionalista a produção cultural do Sudeste porque essa região detém o poder econômico e o controle da mídia no Brasil. Pagode é samba e acabou-se. Mas baião é música regionalista nordestina, oxente! E se atreva a dizer que não!
Bens de cultura são produtos vendidos como Coca-Cola e calças jeans. Poucos artistas escapam à sedução desse modelo, que acena com uma fatia do mercado consumidor ou a promessa de um Oscar. O cinema iraniano é um exemplo raro de independência. Mesmo o nosso celebrado Walter Salles Júnior realiza seus filmes dentro da saia justa costurada por seus produtores, de olho no mercado internacional.
Um xamã do Amazonas deu um triste depoimento num programa de televisão. Ele queixou-se que a sua medicina era inferior à dos homens brancos, porque os médicos ganhavam muito dinheiro e ele não tinha grana para comprar iates nem helicópteros.
O olhar de um povo sobre a cultura de outro povo que lhe é estranho tende a ser preconcebido. Gregos e romanos consideravam bárbaros os que estivessem além das suas fronteiras. Americanos e europeus nos acham exóticos. Capistrano de Abreu queixava-se de que ainda não haviam escrito a história dos sertões do Brasil, porque nossos historiadores sempre ficaram nas cidades litorâneas. Um cineasta da nova geração também declarou que o cinema não esgotou a épica sertaneja.
O que se deve considerar na análise de uma obra de arte é a sua qualidade, independente da origem. Se usássemos o juízo da maioria dos críticos literários, acharíamos o Quixote de Cervantes regionalista, anacrônico e excessivamente prolixo. Mas nenhuma obra permanece tão contemporânea. Cervantes não sentiu vergonha da sua Espanha provinciana. Não foi atrás do cenário de um país rico, Florença, por exemplo. Escreveu no seu idioma, sem ligar para as modas literárias do resto da Europa.
Não digam para abjurarmos a nossa cultura, em troca de reconhecimento. Um contista da “nova geração” adulterou sua carpintaria literária para merecer o direito de constar numa antologia de contistas “pós-modernos”, editada em São Paulo. Preço alto. Mais alto que o pago por minha namorada de adolescência com a sua ficção romântica sobre campanários góticos e arlequinadas, de um país que ela continua sem conhecer. Ou terá conhecido numa excursão para a terceira idade?
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