18 ago Um olhar apaixonado sobre o Recife
Deve-se chegar ao Recife pelos ares, voando de ultraleve. Assim podemos enxergá-lo inteiro em meio ao oceano, aos rios Capibaribe e Beberibe, às marés e aos mangues. Vemos cada pedaço de terra firme cercado de águas salobras, formando ilhas que se chamam Santo Antônio, Leite, Boa Vista, Retiro… Unindo-as como as costuras de uma saia, as pontes compõem um cenário suspenso, dão a impressão de que a cidade flutua e foge ao destino de afogar-se no Atlântico. A nenhum viajante, porém, o Recife se entrega imediatamente. Seu melhor encanto consiste em deixar-se conquistar aos poucos. É uma cidade que prefere namorados sentimentais a admiradores imediatos, pois não é fácil de amar, como observou o sociólogo Gilberto Freyre.
No começo, o Recife era apenas uma ilha estreita, brotada entre águas de rio e oceano, onde pescadores e navegantes se arranchavam. Mais à frente dessa terra “metade roubada ao mar, metade à imaginação”*1, protegendo-a e criando um porto natural, os arrecifes de corais que os árabes diziam ár-raçif se estendem iguais a um caminho pavimentado. Deles veio o nome da cidade, o masculino Recife, e o porto em torno do qual tudo prosperou. Por ele entraram colonizadores portugueses, piratas franceses, invasores holandeses e parceiros comerciais ingleses. O Recife pareceu familiar aos flamengos, quando conquistaram Pernambuco em 1630, tendo à frente o conde Maurício de Nassau. Durante 24 anos, até que os holandeses fossem expulsos, transformou-se na Mauritzstad dos Armadores das Índias Ocidentais, a cidade Maurícia. Nesse curto tempo, se abriu ao comércio, ficou cosmopolita, falava vários idiomas da Europa e de outros lugares do mundo, ganhou prédios, pontes e saneamento, conheceu a liberdade de culto, recebeu judeus que fundaram a primeira sinagoga das Américas e viviam fora de guetos ou judiarias.
A lembrança boêmia do bairro portuário do Recife, ou Recife Antigo, prevaleceu sobre o presente. Bares e edifícios no estilo eclético abrigaram furtivos marinheiros. Os idiomas do mundo se misturavam ao sotaque de mulheres e estivadores, ao som de pianos e vitrolas. O lugar onde tudo começou foi batizado Marco Zero. Ali, a cidade celebra suas festas. Partindo-se dele e atravessando uma faixa d’água, chega-se a um parque de esculturas, conjunto de obras em cerâmica e bronze do artista Francisco Brennand, sobre arrecifes de corais. Ao longo dessa esplanada, sereias metade pássaro alçam voo ao infinito.
Olhe para trás, não receie transformar-se em estátua de sal como na história bíblica. O Recife é quente – mesmo com a brisa que sopra –, a maresia cheira forte e recobre nossa pele de água e sal. Há som ao redor, barulho de vozes, motores e buzinas, orquestras e tambores. Caminhe, suba ao último andar do Paço Alfândega. Do terraço, contemple por cima do rio mar o Grande Hotel, onde se hospedou Albert Camus na década de 50. Febril, ele comparou a cidade a Florença. Outros acharam que fosse uma Veneza Americana ou Sevilha sem praça de touros. Nunca soube se Camus provou da nossa culinária, a cartola preparada com banana, queijo de manteiga, açúcar e canela. Nem se entrou no Teatro de Santa Isabel, ou no Palácio do Campo das Princesas, com jardins tropicais concebidos por Burle Marx.
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