29 ago Meu voto não é de fé religiosa
“O nosso querido e saudoso mestre Ariano Suassuna temia os estragos norte americanos sobre a arte brasileira. Mal sabia ele que o inimigo já se instalara no meio de nosso povo, agindo, ganhando espaço, demonizando, perseguindo as matrizes culturais africanas, ibéricas e indígenas, que nos formaram. As religiões evangélicas, pentecostal e para pentecostal, exercem um poder tirânico sobre o nosso povo, tiranizando-o como os radicais islâmicos ou os tribunais de inquisição católica. Numa crônica escrita há mais de sete anos, já alertava sobre isso.”
Meu voto não é de fé religiosa
A empregada de nossa casa entrou para uma igreja evangélica radical. Antes, ela gostava de assistir novelas de televisão, sobretudo as mexicanas, via filmes de terror até a madrugada e ouvia música num rádio. Agora, ela vira o rosto quando cruza a sala e a TV está ligada, aposentou o radinho e despreza jornais e revistas. Não sei como ela se informa do que acontece no Brasil e no mundo, pois recusa qualquer forma de jornalismo e apenas repete o que seu pastor prega.
Irmã Josete trabalha das 7 às 15 horas, de segunda a sexta-feira. É uma boa funcionária, com mais de 20 anos de serviços prestados à família. Quando ela entrou para a Igreja Deus é Amor, viveu um período delirante de conversão. Se acontecia de pernoitar no trabalho, ninguém conseguia dormir, escutando leituras da Bíblia em voz alta e cantos desafinados. Felizmente, ela dorme na sua própria residência e esses pesadelos foram ocasionais. Constantes foram os assédios e as pregações para nos converter à Palavra e nos livrar das garras do Inimigo.
A única Bíblia verdadeira e confiável é a que foi indicada pelo pastor. Ela contém ensinamentos que as outras traduções não possuem. Minha Bíblia pertence a uma Igreja do Erro, no caso, a Católica, e não possui nenhum valor teológico, nenhuma credibilidade. Irmã Josete prega as teorias mais absurdas sobre os acontecimentos da história e faz uma leitura radical do que lê na Escritura.
Quando viveu o período mais radical da conversão, Irmã Josete decidiu salvar a mim, aos meus três filhos e a minha esposa de queimar eternamente no fogo da Geena, um símbolo da destruição eterna, a segunda morte ou o inferno. Nesse tempo, ela se aproximava da mesa onde almoçávamos, nos olhava com desprezo e, sem qualquer prólogo, começava a cantar o seu hinário. Um constrangimento. Minha família, que não professa religiões, nem frequenta igrejas, mantinha uma atitude científica, avaliando o delírio.
Num dia em que eu tomava café, percebi o olhar de Josete sobre mim, felizmente sem a força destruidora dos antigos profetas. Ela me falou: o senhor trabalha tanto, se esforça tanto, mas nada disso vai impedir que se queime no inferno. Eu perguntei: quer dizer que toda minha vida dedicada ao serviço público, ao trabalho de médico, o meu esforço em ser ético, nada disso contará para mim? Nada, ela respondeu, porque o senhor não fez o verdadeiro batismo e não vive a Palavra.
Fui empurrado à Geena, vale na periferia de Jerusalém usado como depósito de lixo, onde lançavam os cadáveres de pessoas consideradas indignas, restos de animais e outras imundícies. Um símbolo de destruição eterna, interpretado como inferno. Irmã Josete condenou-me sem a menor consideração por minha luta para valorizar seu trabalho, seus direitos, sua promoção social. A religião significa bem mais para ela. Ou será o ódio pela permanência do modelo de escravidão no emprego doméstico?
Descobrimos que não existem vínculos afetivos entre nós, que nunca existiram, ou foram radicalmente negados em nome da Fé, ou do rancor ancestral entre empregado e patrão. Desconfiei que Irmã Josete nos afogaria no rio Capibaribe, a mim e a toda minha família, como faziam os republicanos da Revolução Francesa, se o pastor ordenasse. Ou talvez já sonhasse fazer isso, bem antes de converter-se.
Precisamos de um estado laico, avesso a qualquer representação religiosa na política. Acompanho a publicidade eleitoral e não concordo com a vinculação de candidatos às Igrejas e às suas funções de pastores, criando um poder paralelo manipulador. Vejo nisso um perigo, apenas insidioso no momento, mas de grande risco futuro.
O candidato que se apresenta no papel de pastor ou crente, pensando em arrebanhar votos dos fiéis e ganhar apoio de sua igreja, não é ético, merece o fogo da Geena. E, de preferência, não deve ser eleito.
Da mesma maneira não é ético o deputado e candidato a senador Romário, um ex-jogador, fazer propaganda de cerveja e obstar a votação da lei que controla a publicidade do álcool. É vergonhoso, mas é Brasil.
(publicada em 2014)
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