O homem é mesmo um animal político? | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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O homem é mesmo um animal político?

Qual seria a relação entre literatura e posicionamento político, ou, em sentido mais amplo, entre literatura e política? Escrever é um ato de resistência? 

 O conceito de homem político de Aristóteles responderia à pergunta. Não fiz uma viagem à Ilha de Sacalina, mas trabalhei como médico clínico durante 40 anos num dispensário de tuberculose, que chegou a ter 1200 leitos. Nesse mesmo tempo, atendia consultas em psiquiatria e traumatologia. Também prestei serviço em emergências, ambulatórios e enfermarias de hospitais, sempre como servidor público. Não enxergar o sofrimento humano, aquele que faz o personagem Raskólnikov se ajoelhar aos pés da prostituta Sônia, em Crime e castigo, seria alienação ou indiferença. Eu via e sentia a dor alheia, mesmo quando desejava não ver e não sentir para sofrer menos.

O homem político de Aristóteles é carente e imperfeito, necessita de coisas e dos outros, busca a comunidade para alcançar a completude. A medicina me oferecia essa oportunidade e, através dela, eu chegava à literatura. E a literatura foi impregnada de revolta e desejo de transformar a realidade.

          Toda arte é política. Na criação o artista expõe seu olhar sobre o mundo e o homem. Uns de forma explícita, às vezes panfletária. A poesia de Whitman é um discurso político. Ele se revela democrata ao cantar as mulheres, os negros, judeus, imigrantes, povos de todas as origens; ousado ao exaltar as possibilidades de amor entre os gêneros. Erra na medida e no tom ao apregoar o Destino Manifesto de Waldo Emerson, conclamando os americanos a se expandirem, a ocuparem o planeta, validando a prepotência e a supremacia.

          O romance de conteúdo social de Steinbeck não é por esse motivo melhor do que o romance de Faulkner, mais contido nesse aspecto. Há vários exemplos de literatura engajada no Brasil e o resultado nem sempre é bom. Escrever a serviço do Estado, por encomenda de regimes políticos, revelou-se quase sempre um desastre. Brecht silenciou diante dos crimes de Stálin, porque era partidário da Revolução Russa. Hanna Arendt escreveu que “Um poeta deve ser julgado pela sua poesia e, embora muito lhe seja permitido, não é verdade que ‘os que louvam o ultraje têm vozes primorosas’. Pelo menos não foi verdade no caso de Brecht; suas odes a Stálin, aquele grande pai e assassino de povos soam como se tivessem sido fabricadas pelo imitador menos talentoso que Brecht jamais teve”. Maiakovski e Iessienin não suportaram as contradições entre ser poeta e atender às cobranças revolucionárias e terminaram se matando ou sendo mortos pelo regime stalinista.

          Observei, nas feiras e salões literários nacionais e internacionais onde estive, o desejo das pessoas conhecerem escritores que viessem das comunidades sobre as quais tratam seus livros. Cercados de jornalistas, Ferréz, Conceição Evaristo e Daniel Munduruku eram aclamados no Salão do Livro de Paris e na Feira de Frankfurt como representantes de negros, povos indígenas e comunidades periféricas. Investiam-se de legitimidade. Havia emoção e muito público na plateia. Alemães e franceses queriam escutar as vozes caladas por séculos. Em contexto como esse, a literatura é necessariamente politizada. Ninguém estava querendo de Ferréz ou de Daniel Munduruku um romance de cultura, como o de Robert Musil ou Hermann Broch.

          No Brasil, a luta das minorias para alcançar o protagonismo depois de anos de escravidão e opressão tem gerado alguns desacertos. Na tentativa de conquistar voz, vontade e corpo, muitos recusam que artistas que não sejam negros, índios ou favelados se apropriem dos temas que seriam próprios apenas a eles. Bens de cultura são comuns a todos os homens, isso significa liberdade de criação. Os movimentos antirracistas que tomaram as praças e ruas do mundo, depois do assassinato de George Floyd, provaram que a luta contra o racismo precisa ser ganha por brancos e negros juntos. Os brancos têm de reconhecer a igualdade dos negros, ou o racismo nunca terá fim.

          Não é necessário recusar as conquistas do passado, o protagonismo de intelectuais brancos como Joaquim Nabuco e José Mariano e do poeta Castro Alves, na campanha pelo fim da escravidão. Nem virar as costas a Darcy Ribeiro e a muitos outros que tanto defenderam os povos indígenas.

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