21 set Trecho inédito de Galileia
Remexendo em papeis velhos, descobri esse trecho inédito do romance Galileia, publicado em 2018. Sou incapaz de dizer o motivo que me fez refugá-lo. Foram 200 ou 300 páginas deixadas fora do livro. Um outro livro, que nunca terei coragem de publicar. Escrever é um exercício de escolha entre o que parece bom e o que parece ruim.
“Fingi que dormia. Nunca soube se Ismael e o avô Raimundo Caetano estavam apenas de olhos fechados. Imagino que não desejavam expor os nervos de nossa tensão, era mais fácil parecer morto. Davi, sorrateiro, caminhava pelo quarto do enfermo, onde nunca botava os pés. Mas ele veio, estava ali nas suas roupas folgadas.
Não soprava vento no meio dia quente. Parou junto de cada um de nós e olhou-nos como retratos numa parede escura: o avô respirando com dificuldade, o cheiro de carniça que ninguém conseguia aplacar; Ismael deitado na rede, a cabeça pendente para trás, os cabelos abundantes e escuros, a pele gordurosa, a boca levemente aberta; eu tentando acomodar-me na cadeira, as pernas estiradas para bem longe.
O que o primo arredio deseja? Rir de nosso abandono? Depois do que ele me escreveu não espero nada melhor. Mas ele sempre nos surpreende, adeja como um pássaro leve, de um lado para outro, sem encontrar pouso. Senta aos pés do avô, de costas para mim, e somente quando posso abrir os olhos sem que ele perceba, avisto-o colocando a flauta entre os lábios, preparando-se para tocar.
Toca uma música celestial, uma composição cujo compositor não identifico, o que tira metade do meu enlevo. E ao escutá-lo, volto a achar que o primo é melhor do que todos nós, apenas porque é um artista, um músico manipulando as notas, me fazendo esquecer suas confissões.”
No Comments