24 set Entrevistas revisitadas
Acho que desde o romance Galileia rompi com a mordaça do universo sertanejo e cheguei às cidades, uma trajetória que também é a de minha vida. Nesse novo livro (refiro-me ao livro de contos Retratos imorais) a paisagem predominante é o Recife, cidade onde moro há 41 anos (hoje, diria 52 anos). Se os meus personagens em paisagens de sertão já eram neuroticamente urbanos, agora estou mais solto para escrever o que bem quiser e transitar por onde quiser. É mais fácil refletir sobre questões atuais do mundo, na perspectiva de uma cidade grande e complexa como o Recife, do que preso a uma paisagem cristalizada, que nem mais existe.
Eu sempre vi muito cinema, escutei novelas de rádio, vi teatro e escrevi para o teatro. Acho que faria cinema, mas não tenho mobilidade para isso, pois sou médico e trabalho em empregos fixos. Fui psicanalisado durante dez anos e fiz formação psicanalítica. Às vezes esqueço que estou escrevendo um romance ou conto e penso num roteiro de um curta metragem, como na narrativa Homem Sapo. Misturo as linguagens e por isso meus contos são impregnados de teatro, cinema, catálogos de exposições, imagens, muitas imagens. Escrevo com os olhos. Quanto à psicanálise, não existe literatura que não seja psicanalisada, desde Freud, ou desde Dostoievski.
Reescrever é bem pior do que escrever. Dá mais trabalho, dói revisitar textos guardados. Reescrever é escrever duas vezes. No conto Romeiros com sacos plásticos (está em Retratos imorais), bem antigo, narro a trajetória de uma romeira de Juazeiro do Norte, assunto que conheço e ao qual sempre volto. Vivi no Crato e no Juazeiro e fiz algumas romarias viajando em pau de arara. A primeira história se limitava a uma narrativa linear, sem muitas intromissões do autor. Senti necessidade, depois de trinta e dois anos, de trazer a ação para um novo contexto, um Juazeiro do Norte desfigurado por sacos plásticos e motos. Um fotógrafo francês, Patrick Bogner, teve a mesma impressão que eu. Nas fotos dele, os romeiros estão sempre com sacos plásticos nas mãos. O meu reencontro com os textos se dá num presente desfigurado, não sei se melhor ou pior do que eu vira antes.
Escrevemos para esquecer, para nos livrarmos da memória. Quando nos desfazemos de uma narrativa, o que acontece depois que publicamos um livro, sentimo-nos aplacados, em parte aliviados das lembranças que nos alucinavam e fustigavam. Além disso, os textos deixam de ser nossos, não nos pertencem mais. Só o leitor pode recriá-los com sua leitura. A memória azucrinante passa a incomodar o juízo de outro. Felizmente.
Nunca retorno aos meus livros. Uma vez um leitor me mandou um livro todo anotado, para o meu autógrafo. Senti verdadeiro constrangimento em abri-lo, pois já não me pertencia, era de outra pessoa, que o estava reescrevendo. Como já falei anteriormente, os escritores sobrevivem apenas através dos leitores. Nós merecemos viver, sendo lidos.
Jorge Luis Borges, depois da Bíblia, foi a melhor descoberta literária de minha vida. Talvez Borges seja um narrador bíblico, infinito, e por isso eu goste tanto dele. Acho que me filio a essa tradição de narradores bíblicos, contidos e ao mesmo tempo exaltados, e olho Borges como o escritor que eu gostaria de ser. Começamos a escrever assim, desejando ser como alguém que admiramos. Um dia descobrimos nossa voz narrativa, o ritmo próprio. E aí nos tornamos também escritores.
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