28 dez Só praticando um haraquiri
Sim, sim, todos vinculam o romance O castelo, de Franz Kafka, a um sistema burocrático eficiente e inescapável, que se confirmou com o stalinismo e o nazismo. Desde então, a burocracia vem se aperfeiçoando a instâncias de loucura.
Ontem, vivi uma experiência irritante e enlouquecedora. Fui comprar peças de uma roçadeira à gasolina, dessas que aporrinham nossos ouvidos, limpando o mato de ruas e calçadas do Recife. Na hora de pagar, enfiei o cartão na maquineta e apareceu o aviso: procedimento incompatível.
– Oxe, acabei de passar num posto de gasolina, falei para a caixa.
– Tente outra vez.
Depois de quatro tentativas, a caixa sugeriu:
– Experimente por aproximação.
Experimentei duas vezes e li a frase irritante: procedimento não liberado.
– Não é possível, murmurei tímido.
As pessoas na fila me olhavam como se eu fosse um caloteiro, além de se chatearem com a demora. Fui encaminhado a outro caixa e tudo se repetiu da mesma maneira. Decidi pagar com Pix, mas era necessário fazer um cadastro, que demorava. Propus pagar com dinheiro (felizmente tinha passado num banco) e me mandaram retornar ao vendedor para emissão de outra nota, porque mudara a maneira de pagamento.
Ao chegar em casa, liguei para central do Banco do Brasil, administradora do meu cartão. Depois de falar com dois computadores, que me avisaram sobre a gravação da conversa, cheguei a uma atendente não virtual, que me chamou pelo primeiro nome, com bastante intimidade.
– Olá, Ronaldo.
– Bom dia Sra. Daniela (ela anunciara o nome).
Pediu números de CPF, RG, número do cartão, endereço… O sotaque é sempre abominável e tenho tanta dificuldade em compreender o que falam como em entender o português de Portugal.
– Qual o problema?
– Passei o cartão sete vezes em duas maquinetas, aproximei três vezes e ele não funcionou.
– Um momeeeeento!…
Espero.
– Mais um momeeeeento!…
Aguardo, durante cerca de dez minutos, escuto vozes do outro lado.
– Consta que o senhor aproximou o cartão por três vezes, e esse procedimento não está autorizado.
– Não senhora, eu passei o cartão em duas maquinetas por sete vezes, quatro vezes em uma delas e três vezes em outra. E sempre fiz compras pagando por aproximação.
– No meu sistema consta que senhor fez três aproximações.
– Passei sete vezes o cartão em duas maquinetas e não funcionou.
– No meu sistema o senhor fez apenas três tentativas de aproximação e não está habilitado para isso.
– Mas ontem paguei dessa maneira.
– O sistema diz que o senhor não está habilitado. E só fez três aproximações.
Perco a paciência.
– A senhora parece um robô repetindo a mesma coisa. Acha que não tenho o que fazer? Que sou mentiroso? Iria perder o meu tempo falando com a senhora?
– No que mais posso ajudá-lo?
– O que faço com o cartão? Ele não funciona.
– Seu cartão está perfeito. No meu sistema consta que está funcionando, apenas não foi habilitado para aproximação.
Grito.
– Sempre usei-o por aproximação.
– Em que mais posso ajudá-lo?
– Cancele o cartão.
A ligação cai.
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