03 dez Baile de todo recifense
Matéria publicada no Caderno Mais, do Jornal do Commercio, 30 de novembro de 2014.
Por Mateus Araújo
Na primeira vez que viu uma popular, o escritor Correia de Brito se encantou. Tinha sete anos, ainda morava no Crato, Sertão cearense, quando as cores, as músicas e os personagens da encenação da lapinha lhe chamaram a atenção de tal maneira que nada visto ali foi esquecido até hoje. A semente plantada na infância germinou no adulto. Autor de uma literatura contemporânea, Ronaldo reescreveu no seu teatro esse universo naïf e particular das nossas entranhas geográficas de maneira a romper barreiras regionais e também do tempo.
O Baile do Menino Deus, escrito em 1981 e encenado pela primeira vez 1983 no Teatro Valdemar de Oliveira, é um exemplo disso: dramaturgia que fala a língua do Nordeste ao mesmo tempo em que reencontra a identidade brasileira. A peça, conhecidíssima entre os recifenses e montada em todo o País, revela o Brasil e a cultura popular apresentados a Ronaldo por Maria Luiza, empregada da casa onde ele viveu a infância. “Maria Luiza me levou à ladeira do seminário para ver a lapinha, a representação do nascimento do Menino. Havia pastoras,borboleta, beija-flor, ciganas, caboclinhos, boi, burrinhas, Reis Magos. Foi uma experiência teatral que me marcou profundamente. Até hoje sei quase cem músicas”, conta o cearense que em parceria com Assis Lima escreveu a Trilogia das festas brasileiras, unindo o Baile a Bandeira de São João e Arlequim.
Em 2014, o Baile do Menino Deus comemora dez anos de encenação no Marco Zero. De produção grandiosa (são dezenas de profissionais envolvidos, além de enorme cenário e camarim), a montagem reúne um público de 60 mil pessoas a cada nova edição. É um dos maiores eventos cênicos do Recife, equiparando-se, em grandiosidade, à superprodução da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova, Agreste.
A cada fim de ano, o Baile convida a sociedade a repensar também um tema atualmente em voga: a ocupação dos espaços públicos pelo povo (de todas as classes), reafirmando o valor natalino tão esquecido em tempos de falsas recriações desses espaços. O espetáculo é da rua, do povo e de todos os recifenses. O auto natalino – que narra a saga de dois Mateus (brincantes do cavalo marinho) em busca da casa onde nascera o Menino Jesus para, em frente a ela, fazerem uma grande festa – congrega inúmeras manifestações da nossa cultura popular. Leva ao palco personagens que habitam um imaginário de cores e sons do nosso povo, o mesmo universo que encantou Ronaldo.
“Eu sempre vivi dentro da cultura popular. Atrás da casa de meus pais morava um mestre de reisado. E eu via o reisado. Eu sei todas as sequências do reisado. É a música mais linda do mundo. Na minha porta, no interior, passava, na Semana Santa, o Judas em cima do jumento para ser malhado; e na festa de Nossa Senhora da Penha descia o pau da bandeira, uma festa báquica. Eu viva exatamente todos esse ciclos, até sair do Crato, aos 17 anos.”
O sucesso e a beleza do Baile do Menino Deus estão justamente nesta identificação que o povo brasileiro tem com o Natal ali apresentado. Longe, muito longe dos estereótipos norte-americanos que pululam na nossa cultura, nos trazendo uma festa de neve, comércio e figuras distantes da nossa realidade, a obra de Ronaldo e Assis desperta a saudade de um passado nosso e nos reacende o olhar para aquilo ainda (por sorte) guardado nos morros, nas periferias e no interior: a cultura popular pulsante e reinventada sempre.
Uma festa que tem a nossa cara
O Baile do Menino Deus leva à cena, a cada edição cerca de 200 profissionais, entre artistas e técnicos, de várias idades e linguagens artísticas. O cantor e compositor Silvério Pessoa é um dos que integram o elenco do espetáculo, há dez anos, sendo solista. “O Baile representa para mim uma possibilidade de apresentar esse perfil do artista pós-moderno, de várias vertentes. No meu caso, não atuo apenas na área musical, mas em outras. O Baile trabalha a música, a religião, com dança, teatro. Me sinto mergulhado numa atividade plural”, conta Silvério
“A relação da peça com a cidade tem um simbolismo efetivamente inserido na religiosidade popular. E esse aspecto híbrido, de dialogar a religiosidade popular a partir de um símbolo, mas trabalhando através do olhar da cultura do lugar, é uma coisa que preservo muito no meu trabalho Acho isso de uma simbologia exemplar”, acrescenta.
No espetáculo, os Reis Magos são os reis do maracatu; enquanto as coreografias exploram passos do frevo, maracatu, bumba meu boi. Além disso, o Cristo é ninado pelo Jaraguá, personagem mítico e mágico da brincadeira popular nordestina. O que faz do Baile um espetáculo especial para Silvério também toca a professora Rita de Cássia Almeida, 54 anos. Durante 10 anos que coordenou a educação fundamental de uma escola particular do Recife, Rita de Cássia mobilizou alunos de 10 a 12 anos para encenarem, no final do ano, o texto de Ronaldo Correia de Brito e Assis Lima. “A nossa ideia sempre foi fazer uma festa de Natal nossa, com nossa cara, nosso jeito, nossas tradições. O Baile do Menino Deus foi montado durante esses dez anos que foi coordenadora. E a cada ano o encanto se renovava. Não só as crianças descobriam as nossas raizes com os pais e avós se redescobriam com as brincadeiras”, lembra ela.
Até hoje Rita é apaixonada pelo espetáculo. Ela leva agora seus netos, todos os anos, para assistirem a apresentações no Marco Zero. “É um evento público, que reúne gente de todas as classes, idades, bairros. E é um espetáculo bonito, puro”, afirma a professora. Assim também pensa Silvério Pessoa, para quem o Baile congrega as pessoas na celebração da esperança. “Tive exemplos emocionantes de famílias que não têm peru ou ceia natalina, e para quem o Natal é estar ali, no Marco Zero, comendo pipoca, assistindo ao espetáculo”, diz o cantor. (M.A.)
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