13 fev Todo fé
A pedido de Sidney Rocha escrevi um texto para a exposição “Condenados à vida: 70 anos de Raimundo Carrero”.
Tocou-me falar sobre a fé na vida e obra de Carrero. Editado num catálogo e plotado numa das paredes da mostra, o texto é esse que reproduzo a seguir.
Todo fé
– Eu só tenho pena de Bebé.
– Por quê?
– Porque ele não é igual.
Bebé era como Dona Neném chamava Raimundo Carrero. Ela confessou a tristeza na hora de morrer, lamentando deixar o menino de 12 anos, sem os cuidados maternos. Fervorosa, ia com os filhos para a missa da manhã e a novena da noite. Os pobres recebiam esmolas em sua casa, moedas ganhas no comércio do marido. Adotava uma família necessitada a cada mês. Na igreja, mesmo não sabendo ler, acompanhava os ofícios num breviário aberto. E cantava benditos, alto como as romeiras de passagem por Salgueiro, a caminho da Terra Santa. Carrero assistia a tudo. Sensível, abriu o coração e a alma. Fermentava-se na religiosidade de escritores como Dostoievski e na crença popular do Padrinho Cícero, da Virgem da Conceição, de Nossa Senhora de Fátima e da Mãe das Dores.
– O Pai é Deus?
– Sim, o Pai é Deus.
Aprendia nas lições de catecismo.
Porém foi a mãe que ensinou-o a amar o terço que carrega no bolso, a acender velas no altar de casa, a abençoar e agradecer. Também encaminhou-o à música.
– No céu, as almas boas e os anjos cantam e tocam instrumentos.
O pai não queria ver um saxofone entre os dedos e os lábios do filho.
– Músico é profissão de bêbado.
Carrero viveu embriagado de imaginação, inquieto, possesso. Um doido varrido. O álcool e o dionisismo celebrados num mesmo ritual católico pagão sertanejo.
A embriaguez e o transe, matrizes do conhecimento e da criação. A via dos profetas e beatos, muitos, muitos, nas terras próximas ao Cariri Cearense, onde até milagres aconteciam.
– A hóstia transformou-se em sangue na boca da beata. Eu vi. Juro.
Imaginação ou fé?
O pai empurra o filho para o Recife, matricula-o no Colégio Salesiano, congregação ligada ao Padre Cícero. Uma escola pragmática de ofícios.
– O Filho é Deus?
– Sim, O Filho é Deus.
O filho vive o equilíbrio instável da fé, entre devassidão e santidade. Se arrisca a ponto de perder-se, sobe, sobe e quando resta apenas um fiapo de lucidez, recua até a mãe, ao terço, às rezas e velas acesas, ao breviário católico moralista e piegas.
“Perdão, meu Jesus,
perdão Deus de amor,
perdão Deus Clemente,
perdoai Senhor.”
Danação, moralidade, excesso, contensão, desvario, lucidez.
Os miasmas da fé se plantam nos cadernos, assumem forma de letras, palavras, frases, períodos e romances. Todos os livros são iguais na inquieta busca, todos santificados e obscenos. O escritor ousa, transgride, se martiriza, ejacula. Sabe que a mãe não leria seus escritos, tinha os olhos analfabetos. Nem compreenderia pelo caminho da razão o martírio do filho, apenas pela crença religiosa.
– O Espírito Santo é Deus?
– Sim, o Espírito Santo é Deus.
Repete o catecismo, ignora o fogo dessa afirmação. A fé inabalável no trabalho, no homem – mesmo combalido – e no verbo que queima, regenera e salva.
A literatura.
“No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas.”
É necessário preencher o vazio e o vago. Folhas de papel. Dar sentido e ordem ao mundo. Folhas de papel. Ou torná-lo mais incongruente.
Escreve febril, escreve.
Febril, escreve, escreve.
Porém Deus regateia em mostrar-se. Às vezes parece tangível, ao alcance da mão. Como as nuvens que avistamos no topo da montanha longe.
A fé cambaleia, retorna, o corpo ameaça parar, a mente convulsiona.
No oratório do quartinho biblioteca, onde os livros assombrados caem das prateleiras, santos entram e saem, velas se acendem e apagam, terços descaroçam as contas entre os dedos acometidos de doença cerebral.
AVC. Morte. Ressurreição.
– Então são 3 Deuses?
– Não, são 3 pessoas distintas e um só Deus Verdadeiro.
– Ah, compreendo, embora me pareça tardia a revelação. Juro que sempre desconfiei que a Verdade se referia À Mãe.
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