18 fev Seis contos da era do jazz – F. Scott Fitzgerald
Adaptar uma obra para o cinema pode ser uma fórmula de sucesso, um modo de chamar atenção sobre um escritor que há tempo não é lido nem reeditado. Também é maneira perversa de maltratar bons escritores. Raramente o cinema, tão diferente da literatura – embora os críticos teimem em classificar alguns romances, novelas e contos como “autênticos roteiros cinematográficos”, pensando que fazem um grande elogio ao autor –, consegue transformar um texto literário em linguagem cinematográfica.
O diretor italiano Visconti alcançou duas proezas: transpôs para a tela Morte em Veneza, de Thomas Mann, e O Leopardo, de Tomaso di Lampedusa. Os cinéfilos apaixonados afirmam que Visconti melhorou as obras dos dois romancistas; os literatos, menos afoitos, dizem que Visconti foi muito feliz na sua adaptação. A mesma sorte não teve Garcia Marquez em Crônica de uma morte anunciada, Umberto Eco em O nome da Rosa e Marguerite Duras em O amante. O número de adaptações desastradas é infinitamente maior do que as bem sucedidas. Por isso, bons roteiristas valem ouro e bons filmes viraram sinônimo de bons roteiros originais. Mesmo assim, há quem ainda receba a estátua do Oscar por um roteiro adaptado.
Ainda não vi O curioso Caso de Benjamin Button, inspirado num conto de F. Scott Fitzgerald, e não posso afirmar se o filme melhora ou piora o que o autor escreveu. De cara, é preciso estar atento ao verbo “inspirar”, o que significa que os adaptadores ficaram bem mais livres para reinventar o original. Mas o filme apontou os refletores para Fitzgerald com o relançamento de Seis contos da era do Jazz.
Fitzgerald foi um escritor americano de sucesso a partir de 1920. Muito cedo estourou nas paradas, investiu na carreira de roteirista em Hollywood, teve o romance O grande Gatsby transformado em filme de grande bilheteria. Mesmo assim andava esquecido dos leitores. Todo escritor precisa ser lido para continuar vivo, embora também possa sobreviver através de outras metamorfoses, como as adaptações para o cinema.
A questão que se coloca nesse relançamento é a da atualidade e permanência de Fitzgerald, apesar de um crítico do quilate de Edmond Wilson ter apostado nele e o editor Maxwell Perkins ter escrito sobre ele que: “muitas das coisas que escreveu não pertencem a nenhuma época em particular, mas a todas as épocas…” Será?
O segundo conto do livro, As costas do camelo, não passa de uma anedota bem narrada, um “causo”, diriam alguns brasileiros. Mas é lavra de um escritor dos Estados Unidos da década de 1920, quando o império estava em plena expansão após o sucesso da Primeira Grande Guerra e o mundo não fazia mais do que imitar o que de bom e ruim estampava a marca made in USA.
Do mesmo modo, em O boa-vida e O curioso caso de Benjamin Button sobressai a ironia, o histrionismo e a canastrice, que se tornariam marcas do cinema de Hollywood. O parágrafo final de As costas do camelo é tão visualmente canastrão, que é possível imaginar uma piscadela de olhos entre Tony Curtys e Rock Hudson, num hipotético filme da época. Em O boa-vida, a história do personagem Jim Powell se encaminha para uma epifania quando ele conhece e se encanta com a bela Nancy Lamar. Mas nenhum grande gesto se esboça, nenhuma estupenda ação dos heróis e heroínas. Sobressai apenas o retrato de uma sociedade escrava das convenções, de protocolos sociais e aparências. Uma América mais vitoriana do que a Inglaterra da qual se tornara independente. De novos ricos exibicionistas e bregas, que ao menor alvoroço falam em reputação. Mesmo os jovens supostamente transgressores não fazem mais do que freqüentar festas, dirigir carros e embriagarem-se.
Embora irônica, a crônica de Scott Fitzgerald sobre aquele mundo é condescendente e glamorosa, como se o vazio interior dos personagens, compensado pelo esbanjamento e exibicionismo, lhe fosse caro.
Passados quase noventa anos do lançamento de Este lado do paraíso, livro que segundo Gertrud Stein tornou-se “a Bíblia da juventude flamejante”, é possível uma leitura mais distanciada da obra de Fitzgerald, sem o arroubo de paixão dos que viveram a “Era do jazz”. A impressão que fica é que Fitzgerald foi em parte tragado pelo seu próprio tempo e pelo personagem que escolheu viver, aparentemente transgressor, mas cujo comportamento era uma resposta ao que lhe era solicitado pelo grand monde da época.
É possível reconhecer um Fitzgerald moralista, com os mesmos preconceitos com que retrata seus personagens, acobertados por um esmalte fino e superficial. No conto “Ó Feiticeira Ruiva”, meio absurdo, enfadonho e artificioso, existe uma reflexão do personagem Merlin, que passou a vida alimentando uma paixão romântica por uma mulher extravagante e devastadora, talvez a síntese do encantamento do escritor pelo mundo e pelas mulheres que o arrastaram para um torvelinho de alcoolismo e hedonismo. Numa livraria em ruína, Merlin contempla uma colega de trabalho, fita-lhe “o rosto ressequido, coberto por uma teia de rugas, com uma estranha espécie de piedade” e conclui que ela recebera da vida bem menos do que ele, e que “nenhum espírito rebelde, romântico, a surgir inesperadamente, havia, em momentos memoráveis, dado ardor e glória à sua vida”.
Scott Fitzgerald buscou, para si e para personagens de seus contos e romances, o ardor e a glória. No conto O resíduo da felicidade, ele traça o perfil de Jeffrey Curtain, um escritor mediano: “O homem que escrevera era bastante inteligente, talentoso, fluente e, provavelmente, jovem. Pelas amostras de seu trabalho, verificaria o leitor que ali não havia nada que não lhe despertasse senão um ligeiro interesse pelos caprichos da vida: nenhuma alegria interior, nenhum sentimento de inutilidade, nenhuma sugestão de tragédia”. Embora pareça contraditório, o sentimento que passa para o leitor é o de que Fitzgerald suspeita que Jeffrey Curtain é um pouco dele mesmo.
O curioso caso de Benjamin Button, uma história fantástica sobre uma criança que nasce velha e que regride no tempo até chegar à infância, é mais uma narrativa em tom de anedota. O pai de Benjamin, envergonhado com o filho fora dos padrões, temendo que o nascimento esdrúxulo manche sua reputação, chega a preferir, no auge do desespero, que preferia que o seu rebento tivesse nascido um negro. Ousadias de um escritor da era do jazz. Felizmente alguma coisa mudou. Apenas alguma coisa.
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