22 abr Sobre o instante em que a memória se torna ficção
Fico anos com uma boa história sem conseguir escrevê-la, até que encontro o tom da narrativa, uma sugestão que desencadeia a escrita. Trabalhei durante 40 anos num hospital que já foi um dispensário de tuberculose, com 1200 leitos. Era a Montanha Mágica do Recife. As pessoas entravam ali para se curar, ou para morrer. Ficavam anos naquele lugar triste, sem esperança de voltarem ao mundo de fora. Conheci um homem que perdeu um pulmão e sonhava ser um brincante de carnaval. A história dele era incrível, eu ficava rememorando, porém nunca conseguia passá-la ao papel. Até que li a tradução livre de Haroldo de Campos para o Eclesiastes, o Qohélet. O texto possuía o ritmo da fala do meu paciente, a atmosfera, o mistério. Sentei e escrevi, sem dificuldade. Aconteceu a mesma coisa com Homem folheia álbum de retratos imorais, do livro Retratos imorais. Eu tinha a história, mas perdera o fio narrativo, um pequeno álbum de retratos que o meu paciente me mostrou e parecia uma revista em quadrinhos, as fotos numa sequência narrativa incrível. Travei, não conseguia escrever uma linha. Um dia eu vi as imagens feitas por Barbara Wagner sobre Brasília Teimosa. O santo baixou na hora. Foi sentar e escrever.
No Comments